Ricardo Maia*
Noite de quarta-feira, 10 de novembro de 2021. Reencontrei por acaso, no Teatro Deodoro, o queridíssimo Roberto de Almeida Nobre (1951-). Chegávamos ali para assistir à mais uma palestra do Projeto Diálogos Contemporâneos, tendo então, na cena cultural altamente ilustrada, a brilhante jornalista e contista Tereza Cruvinel. Pouco antes do início do evento, recebi de Beto Nobre um presente inesperado: um belo exemplar, dedicado e autografado, de seu primeiríssimo livro de poesia: “meu tesouro escondido”, segundo ele, e também um “presentes aos meus amigos” (cf. orelha do livro). Na dedicatória, ele escreveu com caligrafia segura: “Ricardo / Amor, desejo e sexo viram poemas”. Na certa o poeta fez isso, à guisa de me comunicar, em generoso e sutil registro, a conclusão de seu balanço poético-existencial.
O livro de Roberto Nobre, intitulado POESIAS, EU CONTO, é uma produção independente que foi editada e publicada este ano (2021), especialmente para comemorar a passagem dos 70 anos de vida de seu autor. Sua autoria, espontânea e autorreferente, foi urdida ao longo das últimas cinco décadas; mas sem preocupações literárias: “Sabe, amigo, gostaria de falar / livre como as ondas do mar, / que mesmo tendo a terra para impedi-las, / martelam eternamente / para vencer esse obstáculo…” (Cf. contracapa) E Roberto diz mais: “Falar! Falar explode o meu ser.” (p. 50). No entanto, em alguns momentos, de acordo com ele ainda: “As palavras fogem, mas sinto desejo de falá-las.” (p.18)
Se “falar já é sublimar [ e, portanto,] é uma atividade” — como diz Cornelius Castoriadis (1987-1992, p. 227), um freudo-marxista —, então essa vontade espontânea e explosiva de falar escrevendo poesias, sem pensar em literariedade ou no cânone literário, é o que faz de Roberto Nobre um autor intimista e assustado à procura de si mesmo. Mas também do outro, como indicam os seguintes versos de MAR: “Irei em frente. / Viverei afim. / Encontrarei o fim… / Em você. […] Meu coração apertado / Procura encontrar-te… / Procurei-te. / Sinto uma necessidade de /// Ouvir-te, / Apoiar-te, / Ajudar-te. /// Mas, às vezes, tenho medo. / Quem sou eu? / O Beto sério – professor? / O Beto irreal – amigo? / O Beto criança – livre?” (Respectivamente, p. 25 e 18)
No eu-poético de Roberto Nobre, essa vontade espontaneísta de “falar” é autoatualizadora do autor. É o que o faz “Dizer um sim verdadeiro, / Um verdadeiro não” (p. 56). E também diz mais, de modo veementemente afirmativo: “Quero. […] Quero / Poder abrir o peito, / na alegria do dever cumprido.” (p. 56) É o que o faz, inclusive e sobretudo, um autor-cidadão que, para tanto, se quer num devir-pueril; ou seja: uma “criança com cara de velho” e/ou um “menino com responsabilidades de adulto” (p. 19). Contudo, um “Menino travesso, calças curtas, camisa aberta no peito, inocente” (p. 67). Pois, como podemos notar, esse querer é também uma vontade imperiosa de falar ao outro ou à sua outridade estrutural ou super-egóica. É uma pulsão, por isso mesmo e sobretudo, sublimada-e-sublimadora. Por quê? Porque sempre condicionada à uma série de circunstâncias psicossociais; portanto: “como as ondas do mar, […] tendo a terra para impedí-la”… (Cf. contracapa) E sendo assim, como nos confessa ainda o poeta: “Eu, assustado, / Deixo-me vulnerável. / Porém, meu quer / Leva-me ao abismo, um outro… E, lá, também encontro você.” (p. 41)
Neste ponto, é impossível não pensarmos na provinciana “Terra dos Marechais”, entorno sócio-histórico do poeta. Mais especificamente, na paradisíaca “Maceió medúsica” que há muito já é causa-e-efeito, segundo Arrisete Costa, da histórica diáspora dos intelectuais alagoanos. Nesta Maceió arquetípica, que é a amante predileta da velha Alagoas ruralista de sempre — e que de tão íntima do poeta lido aqui — encontra-se, em seu livro, representada literariamente assim: “Não compreendo ser igual. / Não aceito ser xerox. / Cada vez procuro ser EU, / e o mundo não me aceita. / Cada vez procuro ser JUSTO, / e o mundo me condena. / Cada vez procuro AMAR, / e o mundo… Ó mundo! / Será que ele é importante? / O meu caminho vai indo, vai indo… / Por uma estrada cheia de carneirinhos, /// Brancos como a pureza. /// Todavia, ficam opacos pela sujeira dos pastores. […] E eles exigem demais. […] Ora, não entendo porque pedem o que não temos!” (Respectivamente, p. 19 e 18)
Note-se, aqui, que não se trata apenas de uma nobre manifestação de individualidade soberana da parte do poeta. Mas inclusive e sobretudo de um “querer” nele que é, também, vontade de saber. Um impulso profundamente desejante, e já situado sócio-historicamente, com o objetivo de avançar em descobertas, através duma escrita criativa, que levem seu “eu-destruição” a transmutar-se em eu-poético. E para que isso? Para que o primeiro eu possa, enfim, “Compreender a raiva contida no homem, / Na afirmação de sua vida.” (p. 56) A mesma “raiva”que é, no entanto, motivo de suas escrivinhações poéticas; e, por conseguinte, de sua autoria literária. Mas felizmente uma raiva que rói e corrói, feito “cupins” (p. 31), em seu “eu, destruição”… (p. 17) Porém, uma raiva sempre sublimada — e, portanto, criativamente controlada — por seu eu-poético: “Os cupins roem dentro de mim / Fazendo-me escrever / Destroem as madeiras / Mas, / Constroem suas casas.” (p.31)
Impossível lermos estes versos de Roberto de Almeida Nobre sem nos lembrar da noção de “destruição criativa”, de Richard Foster & Sarah Kaplan. Uma noção correlata da ideia de “agressividade criativa”, de George R. Bach & Herb Goldberg. Ou quiçá, até, por mais incrível que pareça, da concepção de uma obra autobiográfica representativa da “vingança” do escritor “contra quase todo o gênero humano” (ARENAS, p. 16). Sim, aquela mesma concepção literária que foi criada, e sobretudo vivida às últimas consequências, pelo escritor cubano, homossexual e suicida Reinaldo Arenas (1943-1990). E isso ainda que o poeta deseje (no duplo sentido comum e freudiano) “Que nesse caminho confuso e cheio de matas, / Nossas vidas possam atracar / Na terra firme da ventura. /// Onde o amor seja mais forte / Do que a lança do ódio.” (p. 33) Do ódio sobretudo homofóbico que circula quase sem censura, com altos índices estatísticos, no contexto histórico do poeta, fazendo-o aguçar sua percepção da finitude humana e, portanto, do seu próprio fim iminente: “Morrer… Faz parte do tempo.” (p. 37) Mas Roberto Nobre diz isso centrando-se, graças ao eu-poético, na esperança criativa de manter a lucidez até o último instante. “Ontem, a morte. /// O mundo chorava as minhas lágrimas. /// Eu, autodestruição. / Alegrias! Entranhas vazias! / Ego da vida, / Eco dos sonhos. / Dúvidas… De mim. / Amigos incertos. / Necessidades brutais. / Ansiedade satisfeita. / Caminhos iguais. / Ideais findos. […] A vida corre e cada vez fica mais barra. / O mundo muda e cada vez fica mais constante. / A Terra roda e cada vez fica no mesmo lugar. [..] As palavras fogem, mas sinto desejo de fala-las.” (Respectivamente, p. 17 e 18)
Foi graças a esse “desejo” verbalizador do eu-poético, sentido intensamente por Roberto Nobre, que ele suportou a passagem das horas (ou melhor: “O tic-tac do reógio, / na parede em frente” [p. 51]) e amadureceu tornando-se escritor de cartas e poesias: “…E o dia se fez adulto. /// Penetrou profundo na tristeza da vida. /// E se fez presente, / Completo, Inteiro.” (p. 43) Em consequência, seu eu autodestrutivo fora finalmente transformado por ele num nobre “cavalheiro andante [à] procura da felicidade, usando como ferramenta a fé” (p. 43): “Sempre fui Mariano — nos confessa Beto Nobre, inclusive em prosa autolaudativa, numa das orelhas de seu livro, acrescentando: “[…] minha educação foi toda no Colégio Marista de Maceió, pela manhã, à tarde, o Marista era meu parque de diversão, e à noite eu era locutor da Rádio Caçulinha da Avenida. Uma rádio clandestina, que o Osvaldo, um faz de tudo dos irmãos maristas, regatiano doente como eu, mantinha nos seus aposentos em plena ditadura.” E arremata: “Nunca fomos censurados, nossa programação era música e futebol.” (Cf. nas orelhas do livro)
Mas foi a poeta Ana Maria Vieira e sua irmã, a artista visual e escritora Maria Amélia Vieira — esta última a figura mais icônica do vivartismo, na Maceió-artística dos anos 1980 —, que estimularam Roberto Nobre à enveredar pelo caminho da literatura, em seu processo de formação cultural: “As irmãs Maria Amélia e Ana Maria, minhas amigas de juventude e do coração, tinham a arte como vida e me incentivaram a escrever e me presenteavam com belos poemas. Assim, tive a ousadia de escrever, porem sempre às escondidas.” (Cf. nas orelhas do livro)
Ora: foi na certa também essa ousadia literária de armário que fez de Roberto de Almeida Nobre, neste seu livro de estreia, mais um daqueles “autores sintomáticos” de quais nos fala o grande crítico Affonso Romano de Sant’Anna (itálico dele). Os autores sintomáticos, segundo Sant’Anna (1985, p. 15), existem em grande número. São autores menores e desconhecidos desde o Romantismo, o Parnasianismo e o Simbolismo. Contudo, eles ajudam a reconstituir uma teia de significados importantes para a análise do inconsciente ideológico. São autores que viveram ou vivem, em sua maioria, em total ignorância do que é a Psicanálise. Por serem autores menores, acrescenta Sant’Anna, eles cristalizavam com mais facilidade a linguagem alheia. E Sant’Anna acrescenta, arrematando assim essa sua teoria literária: “Certamente, alguns autores modernos, já sabedores dos mecanismos expostos a partir de Freud, acautelam-se mais ao escrever; disfarce que muita vez se converte em denúncia.”
A consciência dessa menoridade autoral, em Roberto Nobre, está quase redundantemente indicada em sua poesia quando ele se autorrepresenta, nesta, como um “menino com responsabilidades de adulto” e/ou uma “criança com cara de velho” (p. 19). Tal poética, motivada assim por esse devir-infante, é o que explica e justifica a espontaneidade natural e singeleza de sua escritura. Uma escritura inspirada sempre na vida em comum, no cotidiano do mundo vivido com simplicidade e pragmatismo. “Não quero ser visto num pedestal” (p. 19), assevera o poeta sem ambições literárias nem midiáticas. Daí porque essa cristalização mais fácil da linguagem comum daquele Outro generalizado — que, aliás, veio perdurando na escritura de Roberto Nobre, reflete com certeza o entorno psicossocial do poeta, no desenvolvimento de suas interações simbólicas (penso aqui com G. H. Mead) — é facilmente verificável nos seguintes versos de CONFLITOS: “Estou meio confuso. /// Às vezes, fico feliz com meus amigos. / Porém, eles me entristecem muito. / Fico abafado, de coração apertado. / Será que sou eu quem estar errado? /// Sou muito bom. / Sou muito confuso. / Sou muito cobrador. /// É, cara, a cada dia você percebe o quanto foi /// Usado… / Usado… / Usado. / Até o limite. /// E agora… Pra quê, o Beto? / Ele é fofoqueiro. / Ele inventa coisas. / Ele fala demais. / Ele não é de confiança. / Ele só pensa nele. /// Pois é, Beto, eles esqueceram-se de: / …/ …/ …, /// Tudo bem, mas eu tenho a mais pura certeza da grandeza de /// minha alma. / Eu sou assim, muito tolo. / Como me deixo enganar! / Como me deixo ser usado! / Sabe, Beto, você é inteiro! / Como eu gostaria de ser seu amigo! / Amigo para todas as horas, / Amigo para abrir o peito. / Amigo para chorar. / Amigo para gritar. / Amigo por amizade.” (pp. 46-47)
Mas, como sabemos: o esquecimento é político, o Inferno de fato são os outros e amizade é matéria de salvação. No entanto, são nestes momentos de tensões conflitantes que Roberto Nobre, produzindo uma pressuposta literatura menor, flerta, de longe — pois guardando sempre as devidas proporções — com as chamadas obras de vingança da história das Letras. E, em consequência, num de surto de misantropia poemática, ele nos confessa: “Odeio os homens. […] Engano. / Proclamo. / Declamo. / Dentro do vazio. / Paixão. […] Meu coração canta, / Recanta, / encanta… / Mentiras… / Serei eu? / Completo final. / Eu, / Calado, / Odiado, / Amargurado.” (p. 55)
Ora: mas um eu, de todo modo e no final das contas, poético. E isso, sem a menor sombra de dúvida. Daí porque amigos íntimos e pessoais, de Roberto Nobre, sentem-se ‘mexidos’ ao lerem seu livro. E alguns deles — “PHD[s] em amizade” (p. s/n), como sinaliza o poeta com ironia fina — sabem o porquê disso; pois logo se reconhecem nele, constatando que, de uma forma ou de outra, estão todos em seus poemas (KARWATZKI, 2021, p. 11).

Ricardo Maia
É alagoano de Maceió, mestre em psicologia social pela PUC-SP, crítico de arte e autor do livro Maceyorkinos: ensaios de crítica cultural à Maceió-artística glocalizada.
Referências bibliográficas (in progress)
ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
BACH, George R. & GOLDBERG, Herb. Agressividade criativa.
CASTORIADIS, Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto / 3.Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1987-1992. Trd. Rosa Maria Boaventura.
COSTA, Arrisete Cleide de Lemos. Maceió Medúsica: uma interpretação histórica das imagens da diáspora de intelectuais alagoanos na literatura.
NOBRE, Roberto de Almeida. Poesia, em conto. 1ª ed. Maceió: UNIPÊ, 2021.
SANT’ANNA, Afonso Romano. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
KRAWATZKI, Walter. “A amizade é o mais nobre dos sentimento” (Prefácio). In: NOBRE, Roberto de Almeida. Poesia, em conto. 1ª ed. Maceió: UNIPÊ, 2021.
Querido Ricardo, meu aluno antigo , meu amigo.guardado nas páginas maceionses da minha vida, de saudades bem justificadas. Náo me demorarei porq continuo a viver correndo de tanto a fazer
Adorei o texto muito bem desenvolvido e expondo q e a poesia de Roberto (esqueci desculpe ). O amago da fala do.poeta está bastante analisado pelo crítico e táo bem q o leitor do crítico começa a sentir-se um.pouvo leitor do poeta. Parabéns. Vc nunca me enganou.no deu talento menino
Um beijo e saudades dos velhos tempo e de sala de aula. Amizade sempre.Gláucia Lemos.