A música do futuro foi lançada há 20 anos, você pode não ter percebido, mas quase todos te alertaram na ocasião. Eu poderia forjar um tom místico em torno desse controverso enunciado pedindo para você relembrar a primeira frase de Sir Paul McCartney em Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, mas prefiro a concretude impalpável da nuvem: “dê um Google” em OK Computer e você vai perceber que ele esteve no topo das listas de melhor disco de 1997, da década, do século… O álbum foi recebido com tamanho alarde e entusiasmo por público, mídia e indústria fonográfica, que impregnou uma aura sofisticada e de vanguarda em tudo o que a banda inglesa Radiohead veio a realizar depois dele. E eu devo dizer: se cada geração tem o seu Sgt. Peppers, o da minha certamente é OK Computer.

Com o recente anúncio de shows da banda no Brasil, em abril do ano que vem, vale a pena voltar duas décadas e alguns meses no tempo, até junho de 1997, quando o mundo foi tomado de assalto pelo universo caótico-futurista-melancólico de OK Computer. São cinquenta e três minutos e vinte e cinco segundos distribuídos em 12 canções recheadas de ruídos, distorções, ecos, samplers, vozes robóticas… tudo o que se ouve tem sua razão de ser, cada nota ou ruído é parte fundamental do disco como um todo.
Ironicamente, para a banda favorita da robô Sophia (a primeira ginoide a receber a cidadania de um país), o álbum traz um amargurado retrato do ser humano sendo sugado pela tecnologia, consumido pelo maquinário que ele mesmo criou, cada vez mais vazio, desapontado e isolado dos outros que o cercam, sem identidade, numa sociedade automatizada e deprimida, onde há constante vigilância e as diferenças devem ser eliminadas. Vinte anos depois, não parece que Thom Yorke e sua turma realizaram um prognóstico desamparador e certeiro da nossa sociedade? Não à toa, o disco me soa cada vez menos como ficção e mais como crônica.
Esse efeito é ainda mais forte porque o discurso do disco foi construído com preciosismo melódico e arranjos inteligentes, pensados para ajudar nessa construção de sentido. Desde o início, há uma tensão Homem X Máquina, Natural X Artificial, já no primeiro som que se ouve, na dualidade de instrumentos musicais sobrepostos: O Cello e a guitarra distorcida, como se fossem um só instrumento executando a mesma melodia, o orgânico e o sintético. Essa tensão se espalha por todo o disco, recheado de referências, como em Paranoid Android, inspirada no robô Marvin, personagem do livro Guia do mochileiro das galáxias, o primeiro androide na história com sentimentos e que vivia constantemente deprimido; em Subterranean Homesick Alien, que brinca com o título do Blues de Dylan; ou em Karma Police, que parece fazer menção à polícia do pensamento, de 1984. O caos sonoro, a beleza melancólica das melodias e arranjos, a cadência “deprê” em alguns momentos, e principalmente a forma do cantar: tudo está a serviço dessa obra de arte quase profética.

Provavelmente, você está lendo este texto em um smartphone. Levantamentos do IBGE apontam que, em 2014, esses telefones espertinhos se tornaram os aparelhos preferidos dos brasileiros para se conectar à Internet. Já em 2015, a venda de música online (45%) superou a de música com suporte físico (39%), de acordo com a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Vinte anos se passaram e muita coisa mudou no consumo de informação, na forma de se ouvir música. Certamente, o ritual de tirar o disco físico da capa, colocá-lo num aparelho de som (…) é algo incomum nesses tempos em que você leva uma discoteca infindável em streaming no bolso da calça, no seu celular. Não quero soar nostálgico, tampouco radical, mas me parece claro que o suporte da canção – físico ou não – influencia na experiência de audição, ainda mais nesse caso específico. Me parece emblemático que OK Computer tenha sido relançado, este ano, em belas edições comemorativas que trazem canções inéditas e outtakes do mesmo período, com direito a versão digital, CD, disco de vinil e uma fita K-7. E nem há chances de ser qualquer fitinha cassete: foi descoberto que um trecho dela traz uma frequência reconhecida pelo ZX Spectrum, um dos mais tradicionais computadores britânicos dos anos 1980, e nessa frequência a banda escondeu uma lista com o nome de seus integrantes, além de uma série de sons típicos de plataformas 8-bits.
De uma forma ou de outra, o Radiohead parece estar sempre atento a essa relação, às novas formas de consumo de música, e frequentemente ganha destaque por isso. Há 10 anos, em outubro de 2007, numa iniciativa pioneira, a banda disponibilizou seu sétimo álbum, In Rainbows, para download na Internet, pelo preço que o fã quisesse pagar. De acordo com a empresa de monitoramento de tráfego online Comscore e a editora musical Warner Chapell, o valor arrecadado em 3 meses superou os 10 milhões de reais ao redor do mundo, antes mesmo da cópia física do álbum chegar às lojas, mesmo com 62% dos downloads tendo sido gratuitos. A vendagem do disco físico também impressionou: mais de 1,2 milhão de exemplares em dois meses, numa época em que já se havia rezado a missa de sétimo dia da indústria fonográfica que conhecíamos.


Anos mais tarde, em 2013, quando o vocalista da banda, Thom Yorke, fez declarações criticando o modelo insuficiente de pagamento aos artistas praticado pelo Spotify, o Radiohead foi acusado de ter contribuído para diminuir o valor que artistas recebem por suas obras, justamente por essa estratégia de deixar na mão do consumidor o valor a ser pago pela música. O Spotfy surgiria um ano depois do lançamento de In Rainbows e hoje o streaming desponta como a possível salvação da indústria. Utilizando-se dessas novas plataformas, no ano passado, o Radiohead divulgou seu mais recente disco – A Moon Shaped Pool, o nono da carreira – simplesmente apagando todo o conteúdo de suas redes sociais. Todos os perfis ficaram em branco, e a banda em silêncio. Mesmo sem estar na rede (estando), o Radiohead causou um grande rumor e aumentou o interesse pelo disco, mais uma vez bem recebido por crítica e público.

Provavelmente, OK Computer não causaria o mesmo impacto se fosse lançado hoje, mas temos de considerar que a sua existência em 1997 ajudou a criar o cenário atual e, de alguma forma, a desenvolver a maneira como adaptamos o consumo de música. Muitos álbuns deram essa contribuição, os que se destacaram viraram clássicos. OK Computer não deixaria de ser um ótimo álbum de Rock, mas talvez fosse pulverizado em singles, ou nossa pressa em consumir – para dar conta de uma demanda (que parece infinita) de artistas – não nos daria a possibilidade de contemplar, de absorver. Vinte anos se passaram e o disco, com todo o seu conjunto da obra, parece mais pertinente que antes, mérito que talvez nenhum disco lançado este ano venha a ter… teremos de esperar mais vinte anos para saber.