Artes

A GRANDE “NOITE DE VIVARTE”

                                                                

“A coisa muda agora, e muito, de feição”.
(Mefistófeles in Fausto, de J. W. Goethe)[1]

Ricardo Maia*

A noção de uma “dispersada e solitária vanguarda-caetés” é de Ricardo Maia (1987, p. s/n). Ele a criou, micro-historicamente, quando escreveu a apresentação do catálogo amarelo da “1ª. JORNADA” da “CRUZADA PLÁSTICA”, intitulada “A NOVA E A NOVÍSSIMA PINTURA ALAGOANA”[2]. Tal catálogo foi elaborado e lançado por ele, em parceria criativa com Paulo Caldas, na noite de 28 de julho de 1987, sob o “patrocínio” da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED): organização, na época, presidida pelo teatrólogo Pedro Onofre (1935-2018) e dirigida, artisticamente, por Jasiel Ivo. Este, um sobrinho do poeta Ledo Ivo (1924-2012), e, naquele momento, um jovem e aplicado estudante de Direito. 

Os artistas catalogados ― cada um com sua respectiva obra, assinatura, foto e texto –eram: Álvaro Brandão, Dalton Costa, Edgar Bastos (1935-2002), J. Martins, Lael Correa, Lula Nogueira, Maria Amélia Vieira, Paulo Caldas, Ricardo Maia, Ricardo Santana, Roberto Athaíde (1962-1995), Silvano Almeida e Valéria Sampaio. Mas nem todos os textos que acompanhavam as reproduções das obras no catálogo eram do próprio artista. Por exemplo: Fernando Lopes (1935-2011) produziu os textos de Maria Amélia e Dalton; Jorge Barbosa (1961-2022) o de Álvaro Brandão; Manoel Viana o de J. Martins; Cláudio M. o de Roberto Athaíde (1962-1995); Lucy Brandão (1961-2000) o de Lula Nogueira; e Marcos de Farias Costa o de Edgar Bastos. 

Explicando a ausência de alguns nomes no catálogo, Marcos de Farias Costa (1987, p. 4), num artigo intitulado “A pintura alagoana em questão”, escrito especialmente para a sua coluna Literatura, na Gazeta de Alagoas de 26/07/1987, por sinal diz: “Uns, não citados, deverão aguardar uma nova onomástica técnica enquanto permanecem trancafiados no simbólico, à espera da motivação móbile. Mas inexiste política de excludência; apenas uma seleção por temperamento estético e práxis teórica.” 

As singulares assinaturas dos artistas catalogados compunham a capa do catálogo. Já as fotos destes, todas estas em preto-e-branco, ocupavam as duas páginas centrais do mesmo, entremeadas por cinco peças diferentes do belicoso jogo de xadrez que foram recriadas, a bico-de-pena, por Paulo Caldas. No catálogo em lançamento, Paulo e eu, como “organizadores” do evento, procuramos então justificar textualmente assim a sua lógica da conflitualidade: 

A todo instante várias batalhas são travadas no mundo inteiro (ver “cruzada plástica”), desde a luta mais cotidiana pela sobrevivência do indivíduo até os  conflitos entre as Nações. Em meio a esses vários conflitos como em meio às várias propostas para se resistir o sim e o não; entre isto e aquilo, entre o real e imaginário; entre a loucura e o juízo; entre a vida e a morte, enfim. E nessa sucessão de instantes, – tempos e situações se confundem! gerando, em última instância, novas perspectivas empíricas, formas mais livres de expressão.

Na Maceió-artística de então, a mini-histórica “Cruzada Plástica” estava às vésperas da contemporânea Guerra do Golfo Pérsico (2 ago. 1990 – 28 fev. 1991).

Ora: a data de 28 de julho de 1987 marcou, sem dúvida, uma significativa noite. Uma “noite de Vivarte” (MAIA & VIEIRA, 1984-85) que algum(a) historiador(a) ainda verá nela não apenas, e simplesmente, “uma outra exposição rápida com os quadros da primeira jornada [acima referida] e um recital de piano.” (CAMPOS, 1993, p. 171; 2000, p. 96). Verá nela sim ― pela balbúrdia (leia-se, também, Valburga!) geral estruturada de modo estratégico e tático ― um construto típico-ideal (ou uma idealização) da “Noite de Valburga”[3]. Ou seja, uma Walburgernacht-caeté… onde nesta, o demônio fáustico do “vivartismo” redivivo se fazia notar em plena ação cultural radical na Maceió-artística; induzindo aí a sociedade alagoana, como um todo, a dizer “SIM” definitivamente à modernidade estética. Um “SIM” que, na cena cultural local, tomou então a forma simbólica de um enterro. Enterro esse ao qual o público alagoano foi convidado (ou senão mesmo convocado, já que se tratava de uma “Cruzada Plástica”) a dar, vestido de preto, o beijo no rosto morto. Isto é, na fase morta da pintura alagoana… 

Toda essa montagem simbólica de uma face/fase morta da pintura alagoana foi realizada ao som das músicas Mefisto, A Benção de Deus na Solidão (da solitária e dispersada vanguarda-caeté, é claro) e Os Funerais – todas de Franz Liszt (1811-1886) – executadas ao negro piano de calda, da marca Yamaha, pelo pianista Alex Vilaça (? – ?). Raízes de sândalo, sempre-vivas ressecadas e grossas velas-de-sete-dias acesas, decoravam os consoles do salão nobre do Teatro Deodoro, impregnado pelo odor agradável e rústico do sândalo. Garrafas de náufrago, com poemas e frases de efeito dentro delas, também se encontravam espalhadas pelos quatros cantos do referido salão, decorando-o surrealísticamente. 

A certa altura deste hapenning vivarto-cruzadista, num rompante de consciência socialista-ecológica, Alex (de pés descalços, como costumava tocar piano) surpreendeu a todos, interrompendo de súbito a performance teatral – há três ou quatro dias ensaiada por ele, pelo poeta Paulo Déo (? – ?) e por Ricardo Maia ― para discursar “revoltado” contra o capitalismo selvagem: principal responsável, de acordo com sua retórica, pelos desmatamentos e poluições muitas vezes letais à vida viva no planeta Terra

Esse imprevisto e demorado discurso de Alex Vilaça, que em alguns momentos tomou analogicamente característica dada-surrealista, capitalizou aplausos, vaias, pilhérias e assobios da diversificada plateia que, pouco antes excitada e em polvorosa, pela chegada barulhenta e tumultuada do “mestre sem cabeça” – personagem de um pequeno texto de Eugène Ionesco (1912-1994) encenado, na ocasião, por Mauro Braga e seus alunos, para aludir a Pierre Chalita (1930-2010) –, se comprimia lotando o salão “nobre” do Teatro Deodoro da Fonseca: um sólido e suntuoso prédio, construído no início do século XX, situado bem no centro da “cidade sorriso” (Maceió). 

A encenação dirigida por Mauro Braga abriu o evento contando, inclusive, com experientes atores locais como Chico de Assis e Paulo Poeta. Este último, anunciando e reportando entusiasticamente, com auto-falante em punho, a chegada d’O Mestre ionescano que entrava apoteoticamente, na cena social do evento, pela lateral do Deodoro, passando pela frente do teatro de Arena Sérgio Cardoso. O Mestre ionescano era, alegoricamente, o único artista autorizado do Estado de Alagoas. Mas isso por ser ele um artista da elite, na elite e para a elite – a dominar as técnicas e regras escolásticas da pintura acadêmica “chalinescas, chalitenescas e charlatanescas” (para usar aqui um trocadilho provocador do poeta Marcos de Farias Costas, no catálogo amarelo em lançamento). E ali, então, uma trupe de saltimbancos recepcionava o grande Mestre ionescano, composta e interpretada pelos alunos de um curso de teatro que acabara de ser ministrado na FUNTED, por Braga. Aquela trupe, ali, delirava fascinada com a célebre presença ilustríssima do personagem título de Ionesco; que, por sua vez, vestindo fraque preto, subia a longa escadaria para o salão nobre do Deodoro, seguido pelos convidados do evento.

Já noutra performance teatral, realizada em seguida naquele salão, Paulo Déo e Ricardo Maia contracenaram recitando poemas de Augusto dos Anjos (1884-1914). Poemas estes que foram adaptados por Maia, num breve roteiro, para constituírem um diálogo intercalado por execuções das músicas de Liszt já referenciadas. Um diálogo dramatúrgico que envolvia dois personagens: Mefistófeles, interpretado por Ricardo, e o artista alagoano configurando em cena um indivíduo ébrio e fracassado, representado por Déo. Artista esse que, voltando para casa vociferante e solitário, após um grande porre, cruza-se no maio da noite com o diabo fáustico, que se dirige a ele recitando, dramaticamente, os “Versos Íntimos” do grande poeta paraibano: “Vês?! Ninguém assistiu ao formidável / Enterro da tua última quimera. / Somente a ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável! / Acostuma-te a lama que te espera! / O Homem, que, nesta terra miserável / Mora, entre feras, sente irresistível / Necessidade de também ser fera.” 

Aquela agitada noite do lançamento do catálogo amarelo da 1ª Jornada das “Cruzadas Plásticas”, marcou também, “enfim”, segundo o teatrólogo Homero Cavalcante (1987, p. Especial/Teatro?), a montagem pioneira de um texto dramatúrgico de Eugène Ionesco na história do teatro em Alagoas. Pois assim registraria também Cavalcante, por sua vez, dando seu testemunho da militância cultural dos vivarto-cruzadistas e seus aliados ocasionais do grupo teatral Cena Livre, de Mauro Braga: “Contando ainda com uma récita de piano e versos que complementavam-se numa encenação.  A genialidade de Eugène Ionesco (ou teatro do absurdo) foi evocada e encenada por artistas da terra, como colaboração e participação no movimento pictórico que, no dizer de Paulo Caldas “…não podemos admitir uma arte mascarada.” E Cavalcante arremata seu comentário crítico àquela primeira cruzada plástica assim:

A cena teatral aconteceu com o dizer de palavras entre gritos, ao que decerto não foram bem compreendidas. Mas, de qualquer sorte, enfim, Ionesco aconteceu em terras alagoanas. Haja vista, a frustrante impossibilidade de montagem de ‘A Cantora Careca’, pela UFAL, já há alguns anos. E para os que não alcançaram esse Ionesco, deixemos a frase latina: “Qui habet aures audiendi, audiat” – ou – “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. (CAVALCANTE,1987, p. Especial)               

O evento findou com a distribuição gratuita do catálogo amarelo, já referido mais a cima: “[…] o amarelo revisitado (para Goethe o amarelo é o hino da luz)”, escreveria nele o poeta Marcos de Farias Costa (1987, p. s/n). O coquetel oferecido foi, em pouquíssimo tempo e literalmente, devorado pelos estudantes, penetras e/ou moradores de rua do centro da cidade. Pois estes ― graças ao caráter anárquico daquela “noite de Vivarte” e das grandes portas abertas, sem seguranças, do Teatro Deodoro – acabaram participando ativamente ao lado dos convidados ilustres, oriundos das elites sociais e culturais alagoanas. 

Vale lembrar aqui alguns nomes de convidados e convidadas que, além de prestigiar, vestidos de preto, aquela grande “noite de Vivarte”, deixaram suas assinaturas (legíveis) no livro de presenças do evento, demostrando, assim, estarem conscientes do valor sócio-simbólico daquele evento, no Teatro Deodoro, para a história das artes visuais alagoanas; a saber: Adriana Arruda, Adriana Soares, Afrânio Sá, Aline Flávia Gama Guedes, Ana Bulhões, Ana Cristina Maia Barbosa, Ângela Muniz, Carlos Alberto Matos Vasconcelos, Carlos Augusto Damasceno, Emanoel Viana, Farah Mendonça Seton, Fernando Barbosa, Fernando Medeiros, Geruza Maia Fernandes, Givaldo Farias, Gladys Vieira, Hlle Souvlaki, Jeruza Gomes, João Soares de Almeida, Jorge Luiz Riscado, Luiz Alves Pinto Júnior, M. Aquino, Maria Inês Tenório, Micheline Vieira, Mônica Vieira, Morgana Duarte, Nayder Fernado Lima, Paulo Eudes Marques Valente, Petrúcio Trindade, Roberto de Castro, Sandra do C. de Menezes, Sérgio Moab Albuquerque, Sidney Adam, Solange Mari Mae, Vilna Maria Damasceno Correia da Silva.

Dentre os convidados mais notáveis, presentes à referida noite, estavam: o produtor cultural Gustavo Leite (1963-2002), a multiartista Anilda Leão, o crítico de arte Romeu Loureiro, o teatrólogo Homero Cavalcante, os pintores Fernando Lopes, Delson Uchoa e Rogério Gomes (acompanhado da esposa Nira), a pianista Selma Brito, a professora de língua francesa Diva Maria Moreira Gomes (prima dos criativos Carlos e Fernando Fiúza), o jornalista Manoel Miranda Jr., o intelectual Beroaldo Maia Gomes (pai de Lula Nogueira), a assistencialista social Ana Vieira Soares (mãe de Maria Amélia Vieira), o médico e professor da UFAL José Cândido Vieira (primo do ator Sadi Cabral) e a pesquisadora paulistana, também da UFAL, Célia Campos. Esta última, que dois anos antes havia também marcado presença no Grupo Vivarte, já se preparava para o doutorado que faria, na Universidade de São Paulo (USP), elegendo a pintura alagoana como tema de sua pesquisa. 

Por todo o rico e aparatoso estratagema semiótico que estruturou a ação cultural e altamente comunicativa dos vivarto-cruzadistas – e inclusive a de seus aliados das artes cênicas e da literatura ― naquela “noite de Vivarte”, em 28/07/1987, no Teatro Deodoro, haveremos hoje de concluir que o tratamento historiográfico reducionista que Célia Campos (1993; 2000) deu, em sua tese, a toda aquela agitação circundante – sem mencionar, nem de longe, as suas dimensões político-culturais simbolicamente violentas, subversivas, perturbadoras e conflitantes – retroalimentou o silêncio reacionário que, logo em seguida, foi produzido em torno do evento. Principalmente da parte dos cronistas socioculturais elitistas, únicos a dominar e predominar então na imprensa local. Pois só algum tempo depois, e assim mesmo a contragosto, estes resolveram comentar o acontecimento através de pequenos textos. Textos esses muito mais fecundos enquanto documentos de barbárie que enquanto documentos de cultura.

Por exemplo: numa nota intitulada “Cruzadas”, em sua coluna social no jornal Tribuna de Alagoas (cf. edição de 10/02/1987, p. Social/Serviço), o jornalista Joaquem Alves – um vivartista de última hora – disparou, com fina ironia, o seguinte comentário: “O que acho estranho e até pretencioso, é esse nome de ‘Cruzada’, como se fosse um movimento iniciador de uma coisa que não havia, que são exposições, salões, galerias. E os garotos prometem agir em outras etapas.” Como de fato agiriam, em mais duas ações culturais subsequentes. Paulo Caldas (1987, p. s/n), o vivarto-cruzadista “garoto”, foi quem respondeu, prontamente, a esse comentário de Alves, com demolidora réplica que foi publicada no catálogo amarelo já referido aqui. Vejamos a seguir o que diz Caldas em três trechos da mesma:

Percebemos a referida nota além de irônica e desrespeitosa para com nossos intentos, também mal articulada ao fugir do seu dever de bem informar, atribuindo-nos palavras e posturas que não são as nossas. […] Em primeiro lugar gostaríamos de perguntar: considerar Edgar Bastos iniciante não seria incoerência, falta de informação ou de conhecimento? Solicitaremos à Editora Brasiliense, em caráter de urgência, a publicação “O que é Edgar Bastos?” na sua coleção Primeiros Passos. A propósito, ele pode ser um iniciante na “arte” de comercializar o seu trabalho, tendo em vista que nunca aprendeu e jamais aprenderá a manusear as torturantes engrenagens da máquina de fabricar dinheiro, tão bem controlada por alguns. […] Não estamos nos atirando a aventuras inconsequentes como iniciantes sem consciência da realidade que os cerca, como foi dado a entender pela referida nota, quando diz termos afirmado que tudo começará conosco. Em nenhum momento adotamos tal postura. Estamos, sim, dando prosseguimento ao processo artístico que afinal de contas deve caminhar, “abrir portas fechadas” como disse Maria Amélia Vieira, desbravar horizontes, descortinar novos cenários para que não sejamos eternamente condenados ao endeusamento de mitos aposentados.

Corroborando esse mesmo posicionamento “cruzadista” (e, portanto, combativo) de Caldas ao comentário, em nota, do colunista social Joaquim Alves – o poeta Marcos de Farias Costa (1987, p. s/n), por sua vez, num belo (e bélico) texto sobre a pintura naïff de Edgar Bastos, detonaria poética e criticamente atendendo à solicitação de Caldas acerca de Bastos. Vejamos, então, o seguinte um trecho do texto de Farias Costa, intitulado “EDGAR BASTOS OU A TRANSPARÊNCIA TEMÁTICA” (negrito da publicação original), que fora especialmente produzido, a pedido de Ricardo Maia, para o catálogo amarelo daquela 1ª Cruzada Plástica:

Edgar é pintor incomodamente pobre. Não soube caitituar seus trabalhos e é um constante explorado pelos mercadores de arte e os especuladores sem escrúpulos. Sua falta de malícia torna-o presa fácil da “máfia pictórica”, dos falsos amigos que o sabotam e o enganam com palavras picaretas e golpes de mestre. Em Edgar Bastos o homem e a arte dimensão do seu talento. Com centenas de quadros vendidos a preço de bolo não vive condignamente como exigiria a sua condição de artista. “O dia da arte acabou”, disse Hegel, talvez adivinhando que a sociedade capitalista enriqueceria uns e jogaria no limbo outros. Onde encontrar resposta para esse desnível? A resposta está numa frase de Van Gogh, dois dias depois de ter detonado um tiro no peito: “La misère ne finira jamais”. Os girassóis sinfônicos, os tumultos sísmicos das cores, o amarelo revisitado (para Goethe o amarelo é o hino da luz) são caros a Edgar Bastos que tem no pintor holandês seu artista preferido. [Negritos do autor]  

“A inquietação do artista jovem hoje é perceptível, e a cada dia, sustenta uma força que os faz, aos trancos e barrancos, promoverem mostras independentes como foi o exemplo da CRUZADA PLÁSTICA, cujos reflexos nos permitiu avaliar os anseios por estas mudanças”, escreveria em reconhecimento ambivalente o crítico Benedito Ramos (1987, p. 5) em sua coluna Artes Plásticas, na Gazeta de Alagoas. No entanto, sendo Ramos inclusive um artista plástico passadista-neomedieval, na cena figurativa da “plêiade artística” alagoana, ele também, na sequência, dispararia em contraofensiva intimidadora: “Tudo o que vem para contrariar regras possui um fascínio marginal e um gosto das coisas impróprias. Ao alterar o conceito inicialmente estabelecido qualquer nova ordem pode ser abruptamente subjugada dentro dos parâmetros de uma sociedade conservadora. […] Por conseguinte, quem buscar a CRUZADA [PLÁSTICA] como um trampolim promocional está frito.” (Maiúsculas do autor)

Já no catálogo da exposição individual de Reinaldo Lessa, intitulada “UMA CORTINA ENTRE DOIS MUNDO” – acontecida em 05/nov./1987, na loja Sucata Decorações: um sofisticado espaço comercial da socialite alagoana Laís Carnaúba  — Ramos voltaria a enfatizar o poder jovem e/ou juventudista, modernamente atuante no campo das artistas visuais alagoanas de então, contextualizando assim aquele momento; vejamos o seguinte trecho:

No cenário atual, o artista alagoano passou a conviver com uma maior efervescência cultural acontecida na espontaneidade e nos arrufos e uma geração mais jovem e desvinculada dos valores sociais. Tudo isso somado à maior frequência de exposições de artistas de outros Estados e uma maior atuação da crítica, numa postura coadunada ao profissionalismo. O resultado foi o aparecimento de segmentos alternativos, sobrepujando a experiência curricular e a estabilidade do mercado. Esta nova geração passou a heroicamente, sem os “louros” desta aventura.  Não é fácil decompor uma estrutura solidamente plantada por mais de 87 anos.

É interessante notar que nessa 1ª Jornada das Cruzadas Plásticas, ou “Mostra Alternativa” e coletiva então ocorrida, e na qual foram mostradas obras abstracionistas e figurativistas, Reinaldo Lessa não participou como “cruzado”… Pintor figurativista e abstracionista muito próximo à elite local, como já indicava sua ligação social — inclusive com duplo vínculo parental e profissional — com Romeu de Mello-Loureiro. Este, na ocasião, escrevendo no Jornal de Alagoas, em retrospectiva sobre “Os mais marcantes de [19]87”, registrou o seguinte sobre o cruzadismo plástico: “Salvo nos seus excessos verbais de críticas descabidas a alguns valores já consagrados, uma militância, a desses ‘cruzados’, que mereceu o nosso apoio, pelo agito qualificado que trouxe à vida artística da Província.”

Mas sobrepondo-se simbolicamente em autoridade a todos eles, alguns anos depois, a escritura acadêmica de Célia Campos (1993, p. 186; 2000, p. 105), elaborada de modo científico em nível de doutorado, documentaria assim seu testemunho da efervescência cultural do Grupo Vivarte (1984-85) e da Cruzada Plástica (1987-88): “[…] dois importantes fenômenos culturais relativos às artes plásticas em Alagoas, tanto pela reunião prolongada de artistas jovens, e não jovens, interessados em novas linguagens plásticas, quanto pelas consequências acarretadas por essas duas ocorrências”. 

Dando continuidade a esse processo de produção de conhecimento e reconhecimento sobre arte em Alagoas, em nível também acadêmico, o psicólogo e psicanalista Lincoln Villas Boas (1994, p. Especial; 2006, p. 68) ― que, aliás, é irmão do poeta Paulo Renault (1958-2003), um dos intelectuais que colaboraram na produção do evento aqui abordado  ― em seus “Testemunhos do Vivartismo” assim escreveria de modo conclusivo: 

O vivartismo conseguiu afinal os seus intentos com a Cruzada Plástica, cuja Primeira Jornada teve lançamento nas dependências do Teatro Deodoro. A ação dos vivartistas não é mais contemplativa. Era o 28 de julho de 1987. Sua divisa era, então: Écrasez l’infâme! O infame comodismo, o infame marasmo, o infame provincianismo.

Ricardo Maia*

É alagoano de Maceió, mestre em psicologia social pela PUC-SP, onde defendeu, em fins de 1999, a dissertação Um Grupo Chamado Vivarte — Um estudo dos espaços de auto-posicionamentos minipolíticos na organização retrospectiva do movimento vivartista (1984-1997). Maia é também crítico de arte e autor do livro Maceyorkinos — Ensaios de crítica cultural à Maceió-artística glocalizada.

NOTAS

[1] Cf. GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 71; Col. Teatro Vivo.

[2] É interessante notar aqui que esse título da 1ª Jornada da Cruzada Plástica, na qual os vanguardistas-caeté (ou vivarto-cruzadistas) lançaram o catálogo amarelo desta, foi deliberadamente inspirado no título do texto “A NOVA E A NOVÍSSIMA POESIA ALAGOANA”, de Marcos de Farias Costa, publicado em 29 de janeiro de 1985 no folhetim MACEIÓ História-Costumes, n. 59, criado, patrocinado e distribuído pela extinta Fundação Teatro Deodoro (FUNTED).

[3] É a folclórica Noite de Santa Valburga (ou Santa Valpurga [do alemão: Walpurgisnacht]). É uma festa alemã, tradicional e pagã, que sempre tem início na noite de 30 de abril, indo até a noite de 1 de maio – quando todas as forças telúricas se reúnem numa alucinante luxúria. As origens da Noite de Valburga só em parte remontam ao paganismo. Atualmente é chamada de “Noite das Bruxas”. Na história do Dr. Fausto, na versão de J. W. Goethe, Mefistófeles, o terrível anjo das trevas, desejando ganhar tempo e afastar o herói da cena trágica, transporta-o para a Noite de Valburga, onde reina entre demônios e feiticeiras, para que Fausto se abandone aos sentidos. Mas o fato é que lá, naquela “festa das bruxas”, ele sente-se estranho. (Cf. Wikpédia e GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. XX; Col. Teatro Vivo)     

REFERÊNCIAS 

 ANJOS, Augusto dos. Eu: poesias completas. 29ª ed. comemorativa do cinquentenário do seu aparecimento 1912-1962. Rio de Janeiro: São José, 1962. 

CALDAS, Paulo et all. Catálogo de exposição de arte visual Mostra Alternativa “Cruzada Plástica”,1ª Jornada: A nova e a novíssima pintura alagoana. 1ª ed. Maceió: Sergasa, 1987.

 CAMPOS, Célia L. R. T. P. Alagoas: a pintura como produção social – trajetória e crítica (1892-   1992).  São Paulo: 1993. 273 p. Tese (Doutorado em História da Arte) – USP/ECA. 

 CAMPOS, Célia. Uma visualidade: trajetória e crítica da pintura em Alagoas. São Paulo:Escritoras, 2000. Cap. 6, p. 89-116: 3º período, 1980-1992: forma/fundo: a dinâmica se estabelece. 

CAVALCANTE, Homero. O teatro na cruzada plástica. Tribuna de Alagoas. Maceió, 2 ago. 1987, p. Especial/Teatro.

 COSTA, Marcos de Farias. A pintura alagoana em questão. Gazeta de Alagoas. Maceió, 26 jul.    1987. Caderno B, ano LIII, n. 125, p. 4. 

COSTA, Marcos de Farias. Edgar Bastos ou a transparência temática. In: MOSTRA ALTERNATIVA “CRUZADA PLÁSTICA” – 1ª jornada: “A nova e a novíssima pintura alagoana”. Catálogo de exposição em arte visual.  Maceió: Galeria Miguel Torres da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED). Sergasa, 1987. 

GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São Paulo: Abril Cultural, 1976. Col. Teatro Vivo.

 MAIA, Ricardo; VIEIRA, Maria Amélia. Noitário de uma revolta. Maceió. 1984-1985. 67 f. Digitado. Trata-se do manuscrito, ainda inédito, do Grupo Vivarte. 

MELLO-LOUREIRO, Romeu de. Os mais marcantes de [19]87. Jornal de Alagoas. Maceió, 3 jan. 1988.  Coluna Artes plásticas.

 MOSTRA ALTERNATIVA “CRUZADA PLÁSTICA” – 1ª jornada: “A nova e a novíssima  pintura alagoana”. Catálogo de exposição em arte visual.  Maceió: Galeria Miguel Torres da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED). Sergasa, 1987. 

RAMOS, Benedito. As alternativas de uma cruzada plástica. Gazeta de Alagoas. Maceió, 20        set.  1987. Caderno B, coluna Artes Plásticas.

RAMOS, Benedito. Catálogo de mostra de arte visual “Uma cortina entre dois mundos”. Maceió: off-set, 1987.

RAMOS, Benedito. Ministério da Cultura – A procura de telentos. Gazeta de Alagoas. Maceió,     30 ago. 1987. Caderno B, coluna Artes Plásticas.

VIEIRA, Maria Amélia e MAIA, Ricardo. Noitário de uma revolta. Diário inédito das reuniões do Grupo                Vivarte. Manuscrito.

 VILLAS BOAS, Lincoln. Testemunhos do vivartismo: escritos de intervenção cultural na Maceió- artística  da pintura (1992-2004). Maceió: Catavento, 2006. Cap. 4, p. 51-68: O vivartismo.


3 comentários

  1. [29/11 13:05] Thereza Vieira: Muito legal! Um registro importante.Os envolvidos todos com renome.O movimento, tornou- se realmente um marco na cultura de Alagoas.
    Achei muito bom de ler.
    👏👏👏👏
    [29/11 13:06] Thereza Vieira: Bom de ler por ser informativo e pela escrita, q está leve, mesmo com tantas informações concomitantes

  2. Fico extremamente feliz pelo seu empenho e sucesso em divulgar a arte tão pungente, essencial! Parabéns, querido amigo.

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