“— Trabalhemos sem raciocinar, disse Martinho. É o único
meio de tornar a vida suportável. […] — Está bem dito,
respondeu Cândido, mas é preciso cultivar nosso jardim.”
(Voltaire in “Cândido ou o otimismo”)[2]
Ricardo Maia[1]
A mostra individualíssima, intitulada “Jardim de Eva”, inaugurada em 20 de setembro de 2022, no espaço expositivo do Complexo Cultural Teatro Deodoro (CCTD), no Centro de Maceió-AL, tem excelente curadoria decorativa de Milla Pasan & Alice Barros. Vale conferir, in loco, até o próximo 21 de outubro deste ano. O trabalho de montagem foi assinado pela dupla Roberto Dorta & Alisson Almeida.
O Jardim de Eva Cavalcante ocupa os dois pisos do espaço expositivo mencionado e contém um total de 60 obras, sendo, dentre estas: 12 pinturas (em acrílica sobre tela), 26 esculturas-objetos de madeira da “Série Equilíbrio” e 9 fotografias coloridas. Para além do espaço expositivo do CCTD, o espectador mais curioso poderá “revisitar” o jardim artístico de Eva, inclusive no cyberespaço, acessando o link do catálogo do mesmo; confira: AQUI!
O corpo do texto curatorial de Barros & Pasan (enfim adesivado à parede do espaço expositivo só dois dias depois da abertura da mostra, por motivo de força maior) é, de modo bastante simbólico, correspondente à corporalidade física da pintora e escultora abstracionista alagoana Eva Cavalcante: figura diáfana facilmente percebida por sua constante delicadeza e doçura pessoal — apesar do “gesto corrosivo [e/ou] ardente” do seu fazer artístico com “ranger” (de dentes “abstratos-caetés”[3]?) que sempre, na Maceió-artística, se mostra “rompendo as entranhas do tempo” (BARROS & PASAN, 2022).
Mas não só daquele tempo histÉrico, ou “tempo da alma” (Sto. Agostinho), como imaginam pós-modernamente Barros & Pasan (2022). Porém, do “tempo cronológico convencional”. Melhor definindo-o em outras palavras: um “tempo lógico” (Aristóteles) que nos torna, inclusive e sobretudo, no mundo vivido, uma espécie de “passageiros da concretude cotidiana” (D’ASSUNÇÃO BARROS, 2018, p. 76).
O texto curatorial de Barros & Pasan é uma escritura hermetizada, autocentrada demais, quase autista; pois focado, com exclusividade, na obra em si de Eva Cavalcante; portanto, como reflexo disso, também trancafiado em si mesmo. É um texto que se quer, apenas e tão somente, essencialista e semioticista. Por quê? Porque pressupõe, sem historicismo quase algum, no projeto artístico de Eva Cavalcante, um duplo objetivo específico; a saber: “alcançar o essencial do signo tateando com olhos e mãos o imprevisível, até atingir a potência do gesto corrosivo, ardente” (BARROS & PASAN, 2022).
Sendo assim, o referido texto curatorial não faz ampla conexão entre texto (que é a obra de Eva Cavalcante) e contexto (que é o entorno psicossocial sócio-histórico, onde esta foi produzida e também o produziu à posteridade). Essa postura a-crítica, de Barros & Pasan, é escancaradamente “pós-tudo”[4]. Ela escamoteia e alija, de modo deliberado, a história da arte visual em Alagoas. Mais especificamente a história produzida em Maceió nos anos de 1980. E para quê? Para produzir reconhecimento midiático à artista e sua obra, com exclusividade deificadora. Porém, em apenas 15 míseros minutos de sucesso sem maiores esclarecimentos historicistas. É a história da arte alagoana “em migalhas”[5]. Ou, na menos pior das hipóteses, enquanto “puro colunismo social” — como, aliás, já denunciavam os vivartistas em movimento micro-político, e por isso mesmo sendo “vistos como marginais” (Grupo Vivarte, 1995), na Maceió ilustrada de 1985. “A vastidão de seu sucesso”, asseveram ainda Barros & Pasan (2022) sobre Eva, “trilha os caminhos da experimentação múltipla do olhar atento e da inquietude que impulsiona o seu fazer artístico repleto de reverberações contemporâneas que de forma fecunda pulsam em seu gesto.”
O título da exposição, “jardim de Eva”, é apenas simbolicamente contextualizador e sinaliza o tipo de relação complexa e íntima, de Eva Cavalcante, com o mundo social — o alagoano “Paraíso das Águas”[6] (Maceió) — com o qual ela lida e no qual ela produz, sendo representada nele como “a mais fina flor do abstracionismo alagoano” (Ricardo Maia [2022] em redes sociais). No entanto, tal título, que se inspira biblicamente no nome da artista, requer contextualização historicista mais ampla que questione o presente e passado com sua ironia crítica numa “paródia ampla e complexa [que] não é apenas um jogo para o leitor acadêmico.” Mas uma paródia que tenha “a declarada intenção de impedir que qualquer leitor ignore o contexto moderno e o contexto social, e também estético” (HUTCHEON, 1991, p. 70). Mais especificamente, no caso do “Jardim [abstracionista] de Eva”, a Maceió-artística visualista dos anos 1980 e de hoje.
Ora, as “reverberações contemporâneas” (BARROS & PASAN, 2022) não são o que, de fato histórico, se pode notar nos caminhos de Eva Cavalcante. Ao menos não no caminho do seu abstracionismo, pictural e/ou escultórico, absolutista. Na história da arte visual alagoana, o “Jardim” abstracionista de Eva, que é precioso demais, vem sendo cultivado micro-politicamente como reforço sociocultural, na Maceió-artística, ao tardio processo de assimilação-e-acomodação da estética kandinskyana. Um processo que, na arte em Alagoas, só teve seus inícios no limiar da década de 1980, quando e onde circulava a noção provinciana e xucra de que “pintura abstrata é coisa para Europa” (Getúlio Motta citado por LEMOS, 1983). No referido processo, a arte abstracionista de Eva veio diretamente do Parque Lage, no Rio de Janeiro, se juntar a de outros criativos e criativas de Alagoas também abstracionistas. Para quê? Para guerrear, culturalmente, numa retardatária “vanguarda-caeté”[7], contra o subdesenvolvimento da visualidade local de então. Ou melhor dizendo: de uma Maceió-artística que era, na época, “um vasto campo à ser trabalhado…”, segunda a crítica de arte baiana Gláucia Lemos (1983) em artigo polêmico.
Com efeito, na história do “vivartismo”[8] (digo do “modernismo retardatário, em arte, particularmente alagoano”[9]), o “vanguardismo-caeté”[10] sempre foi, e de certo modo continuará sendo, um típico movimento de “subversão simbólica”[11] (ou “semiótica”[12]) dos discursos dominantes na Maceió-artística dos idos de 1980-90. Para quê? Para se chegar à uma “revolução molecular”[13] das “categorias de percepção propriamente estéticas”[14] (nos termos teoricistas de Bourdieu e Guattari). E é sobretudo no sentido dessa “revolução” sutil e incruenta — uma querela elitista que acontece como as brigas de família ou de cozinha[15] — que, certamente, podemos falar da “potência do gesto corrosivo [e] ardente” (BARROS & PASAN, 2022) da criatividade artística de Eva Cavalcante.
“Nas duas faces de Eva / A bela e fera /
Um certo sorriso / De quem nada quer […]
Por isso, não provoque / É cor de rosa choque” [16]
É por tudo isso que Eva sempre nos surpreende com essa sua potência criativa. E o que mais me parece louvável, para além da beleza de arte produzida por ela, é a constante coerência de seu posicionamento firme em termo de “ideologia estética” (EAGLETON, 1993). Pois no processo de desenvolvimento histórico-cultural das artes plásticas, em Alagoas, Eva Cavalcante não embroma, não falseia, não adultera ou burla, com “meia tigela”[17], o mais radical conceito de modernidade em arte que é o abstracionismo visualista. E isso sem falar na sua singularíssima assinatura semiótica, como pintora e escultora abstracionista pura, nem na excelente qualidade profissional das obras que ela produz.
Neste sentido Eva Cavalcante é, sem sombra dúvida, uma das poucas representantes mais legítimas da estética abstracionista no campo da arte em Alagoas. Ela não faz concessão ao figurativismo dominante e predominante na Maceió-artística da visualidade. Muito pelo contrário: ela recusa-se terminantemente, e isso desde sempre, a ser uma “abstracionista de meia tigela”[18]; pois Eva se propõe, muito profissionalmente, a radicar a estética de Kandinsky em Alagoas. Mais especificamente em Maceió. Uma estética que, em nosso Estado, infelizmente ainda não conta com pesquisas acadêmicas sobre sua história enquanto conceito limítrofe de arte moderna. Portanto, vale lembrar aqui de passagem, à propósito desse aspecto limítrofe do conceito modernista de abstracionismo estético, o que diz a teórica Linda Hutcheon (1991, p. 67): “O pós-moderno não é, de forma alguma, absolutista”.
Posto isto, então, como podemos notar, Eva Cavalcante e sua arte abstracionista não devem, nem de longe, ser consideradas pós-modernas. Em outras palavras: como pintora e escultora abstracionista, por excelência, Eva Cavalcante, e portanto também sua ideologia estética, não se coadunam com nenhuma poética pós-modernista, embora, pelo visto, a curadoria de sua atual mostra tenha feito tudo com muito esmero para que isso fosse, pelo menos, aparentemente possível. Ora: a direta vinculação genético-filial do pós-modernismo com o modernismo não nos permite sequer insinuar, como é o caso da curadoria do Jardim de Eva, que um é o outro — só porque os dois já existem e até podem, hoje, coabitar os mesmos espaços de contemporaneidade cronológica. Pois hoje já podemos ter o “pós-modernismo”, na contemporaneidade do seu “pensamento complexa”[19], como um conceito periodicizante “cuja função”, de acordo com Fredric Jameson (citado por HUTCHEON, 1991, p. 60), “é correlacionar o surgimento de novas características formais na cultura e o surgimento de um novo tipo de vida social e uma nova ordem econômica”.
Sendo assim, se lançarmos mão da distinção baumaniana periodicizante (“modernidade sólida”/“Modernidade líquida”[20]), podemos associar, historicamente, a modernidade sólida ao “modernismo” e a modernidade líquida ao “pós-moderno”. O que nos leva a atestar um “relacionamento complexo”, entre os dois ismos, segundo Linda Hutcheon (1991, p. 61). Mas que, segundo ela ainda, tem “consequência, diferença e dependência” implicadas; e isso não se deve negar. Pois mesmo, estando o moderno inevitavelmente embutido no pós-moderno, não devemos confundir os dois ismos — achando, de maneira obstinada e ingênuo, que um é o outro. Daí a advertência de Hutcheon (1991, p. 61) de que “devemos levar em consideração não só formas de arte” — “PINTURA – ESCULTURA – FOTOGRAFIA”[21], como no caso da curadoria do Jardim de Eva —, “mas também o discurso teórico, caso queiramos definir uma poética da criatura paradoxal de nosso tempo, à qual damos, sem temer as consequências boas ou más, a denominação de pós-modernismo”. Mesmo sendo a contextualização do pós-modernismo a mais complexa e aberta.
Por tudo isso até aqui assinalado, ao visitarmos o Jardim de Eva Cavalcante, no espaço expositivo do Complexo Cultural Teatro Deodoro, não devemos pensar, de forma alguma, que se trata de uma mostra “contemporânea” (no sentido do pós-modernismo poético). O Jardim de Eva é, na verdade, um “abstrato espaço” — para usar aqui expressão de Maria Amélia Vieira (1984, p. s/n), a pioneiríssima entre as pintoras abstracionistas alagoanas, ou em Alagoas, no Manifesto Vivartista. Definindo-o de outro modo: é um espaço de modernidade estética tardia e radical; portanto, de “vivartismo convicto”[22] (MAIA, 1999).
Ora: o “Jardim de Eva”, no nosso alagoano “Paraíso das Águas” (Maceió), é uma mostra “contemporânea” apenas no sentido cronológico deste termo; pois que foi produzida nos dias que correm, jamais no sentido filosófico da chamada “poética do pós-modernismo”. Embora a curadoria tenha apelado para esta, ao organizar a exposição misturando, por exemplo, obras de abstracionismo pictural e escultórico com imagens fotográficas de uma única autoria numa mesma mostra individual. O que na mesma nos dá a impressão de que se trata, na verdade, de uma mostra de dois ou três expositores com técnicas e focos temáticos distintos. Ainda mais quando no espaço expositivo faltava, por razões de força maior, o texto curatorial de parede e informações cruciais sobre as obras ali expostas. O que tendeu a deixar meio confuso o público-espectador desavisado; muito embora, por outro lado, tenha surtido um efeito decorativo encantador à mostra.
A exposição Jardim de Eva, realmente, ficou linda. Seu design revelou um extremo bom gosto decorativo da parte da curadoria. Mas, lamentavelmente, sem sentido didático-historicista quase nenhum. Não, pelo menos, para o espectador leigo em arte alagoana. Ou mesmo em Arte. E o grande legado do Jardim de Eva à história da arte em Alagoas é, fundamentalmente, a sua contribuição histórica radical ao processo de assimilação-e-acomodação, na Maceió-artística visualista, da estética kandinskyana. Processo de legitimação cultural este, note-se de passagem, deveras retardatário e sempre muito dilemático para a cultura-alma alagoana.









Ora, é neste exato sentido que podemos dizer, com toda certeza e melhor contextualizando, que Eva Cavalcante é a mais fina flor do aquático “Jardim do Éden” da arte abstracionista em Alagoas. Eu mesmo digo isso sem o menor receio de estar minimizando seu engajamento e participação importantes na experiência sociocultural local; ou, mais exatamente, no processo de construção sócio-histórica da visualidade artística alagoana.
Contudo, na noite da abertura do “Jardim de Eva” Cavalcante, senti muito pelas ausências de outras personalidades criativas locais representantes do abstracionismo estético em Alagoas. E os “abstracionistas-caetés” precisam prestigiar uns aos outros… Especialmente nas noites de inauguração de suas exposições. Ora: eu esperava muito ter visto, no belíssimo Jardim de Eva, pelo menos a metade de meia-dúzia dessas personalidades criativas locais que, ontem (década de 1980) e hoje, já produziram e/ou ainda produzem abstracionismo visualista em nosso Estado. Mas não!… Será que ainda, nas regras da arte em Alagoas, “É preciso sangrar para nos reconhecermos”? Na Maceió-artística, vale ainda hoje essa questão! E, por conta disso, precisamos recordar essa coisa dita no Manifesto Vivartista, por Maria Amélia Vieira (1984, p. s/n). E não somente ao visitar o belo “Jardim [abstracionista] de Eva” Cavalcante; mas também e sobretudo ao pintar, escrever e expor no nosso “Paraíso das Águas”.
Ricardo Maia
É alagoano de Maceió, mestre em psicologia social pela PUC-SP, onde defendeu, em fins de 1999, a dissertação Um Grupo Chamado Vivarte — Um estudo dos espaços de auto-posicionamentos minipolíticos na organização retrospectiva do movimento vivartista (1984-1997). Maia é também crítico de arte e autor do livro Maceyorkinos — Ensaios de crítica cultural à Maceió-artística glocalizada.
NOTAS
[1] É alagoano de Maceió-AL, nascido em 1962; Mestre em psicologia social (de ênfase sociológica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, é autor, portanto, da dissertação intitulada Um grupo chamado Vivarte,na qual realiza um estudo dos espaços de autoposicionamentos mini-políticos na organização retrospectiva do movimento vivartista (1984-1997). É também de Ricardo Maia a autoria do livro Maceyorkinos: ensaios de crítica cultural à Maceió-artística “glocalizada”, pulicado em 2013. Em 2006, Maia inclusive organizou, patrocinou e divulgou, em âmbitos locais (Maceió e Salvador), o livro Testemunhos do vivartismo: escritos de intervenção cultural na Maceió-artística da pintura (1992-2004), de Lincoln Villas Boas.
[2] Cf. VOLTAIRE. Cândido, ou o otimismo. Porto Alegre: L&PM, 2017. Col. L&PM POCKET, v. 92, p. 131 e 132. Trad. Roberto Gomes.
[3] “Abstratos-caetés” foi o tema da terceira e última “jornada” das Mostras Alternativas “Cruzadas Plásticas”. Essa mostra foi também a segunda exposição coletiva de arte abstratacionista que aconteceu pioneiramente, em Maceió, em 14 de janeiro de 1988, na Galeria Arte&Design: um espaço comercial elitista, de propriedade das socielites Leila Nogueira & Tânia da Maya Pedrosa. A referida mostra, organizada por Ricardo Maia & Paulo Caldas, reuniu nomes da/na Alagoas-artística, como, por exemplo: o da pioneiríssima Maria Amélia Vieira, Ricardo Maia, Rogério Gomes, Ivson Monteiro, Reinaldo Lessa, Delson Uchoa, Francisco Oiticica Filho, Carlos Fiúza, Dalton, Neyder Fernando, Haylton Rocha dentre outros. “O resultado” segundo o crítico local Benedito Ramos (1988a), “foi o aparecimento de segmentos alternativos, sobrepujando a experiência curricular e a estabilidade do mercado.” Em síntese culturalista, de acordo ainda com Ramos (1988b, p. 13), uma das consequências da “cruzada plástica” abstracionista na Maceió-artística foi, de fato histórico, “um aluvião de mudanças [que] vem tragando cada vez mais as referências figurativas de nossos artistas.” De fatos os abstratos-caetés eram atores sociais locais que, ali e então, constituíam e representavam, de acordo ainda com Ramos (1988b), uma “nova geração [que] passou a perceber e a vivenciar uma realidade acima da ‘Liberdade Provincial’, arriscando-se heroicamente, sem os ‘louros’ desta aventura. Não é fácil decompor uma estrutura solidamente plantada por mais de 87 anos.” No entanto, esta “cruzada” vivartística não foi a única das três “mostras alternativas”, a exporem obras abstracionistas. Esta foi sim a única das três “jornadas” vivarto-cruzadistas que focara, de modo exclusivo e pioneiro, o tema de sua mostra coletiva em torno da estética de Kandinsky. No catálogo da exposição, duplamente composto em infoedição e impressão off-set, um ensaio historicista sobre a história do abstracionismo estético, escrito pela baiana Gláucia Lemos (jornalista pós-graduada em crítica de arte, pela UFBA, e membro da ABCA/AICA), a pedido da curadoria da exposição, foi distribuído gratuitamente pela organização da mesma. O texto historicista de Lemos jamais fora publicado pela imprensa alagoana. O que pareceu refletir, da parte do jornalismo cultural local, um apoio muito restrito aos vivarto-cruzadistas e um desafeto profundo à mencionada crítica de arte baiana, por seu polêmico artigo crítico intitulado: “Arte Brasil/Arte em Alagoas”, publicado no jornal A Tarde, de Salvador-BA, em 02 de março de 1983. Pouco tempo depois, por força de seu teor polêmico, o referido artigo foi republicado na Gazeta de Alagoas daquele mesmo ano. “Vocês [da ‘vanguarda-caeté’] estão fazendo história?” Lemos perguntaria em carta, à Ricardo Maia, datada de 12 de janeiro de 1988. E a resposta positiva à essa sua pergunta, ela própria daria à Maia seguindo o fluxo de sua reflexividade crítica: “Estão. São os inconformados com a acomodação de certo seguimento da cultura. Gláucia Lemos fez história? Fez. A pedido de um colunista de jornal baiano escreveu um enfoque-crítico generalizado da Arte em Alagoas e constatou a nenhuma realização e até desinformação da arte abstrata, e quase foi apedrejada — ou foi pelo jornal.” Ainda na referida carta, esses dois fatos, na humilde e esquecida história da chamada “arte caeté”, a intelectual baiana haveria de rememorá-los, constatando-os sob um ângulo historicista, quase meia década depois daquela controvertido episódio com o pintor alagoano Eduardo Xavier: “Se alguém um dia tiver a oportuna preocupação em escrever a história da arte em Alagoas, pecará imperdoavelmente se omitir esse dois episódios. Deverá dizer: havia uma acomodação em torno da arte pictórica (pois aí não se fazia xilo nem outras técnicas artísticas, à exceção da cerâmica), e no referente a linguagem pictórica a arte figurativa, com ênfase para os primitivos e ingênuos. Contava-se nos dedos os surrealistas com técnica erudita, como Fulano e Beltrano, os que trabalhavam com tinta aguada, como Cicrano e Fulaninho e o grande nome endeusado na terra era o prof. Beltraninho que tinha boa técnica, mas trabalhava ainda sob a inspiração neo-clássica. Vindo transferida com a família para Maceió, a crítica baiana GL cometeu o ‘crime’ de registrar essa realidade para jornal baiano e foi insultada em artigo assinado por EX em jornal local. Três anos depois, alunos dessa mesma crítica, reunidos num grupo intitulado Vivarte, decidiram sacudir o marasmo a que ela se referia e, com adesão de outros artistas expositores que se chamaram ‘jornada tal’ e ‘Qual’, mostrando obras de linha abstracionista e recebendo certa incompreensão etc. — É, ou não é? Queiram ou não, a nossa interferência, a minha e a de vocês [da ‘vanguarda-caeté’] — cronologicamente — será sempre, e jamais deixará de ser, uma espécie de ‘divisor de águas’. Haverá sempre a arte em Alagoas ‘antes de’ e ‘depois de’. Isso, sem vaidades, mas de olhos abertos.” Estava-se às vésperas da 3ª Jornada: “Abstratos-caetés” da última “Cruzada Plástica”. E sobre esta, na ocasião, o artista visual e filósofo Carlos Fiúza (1988, p. C-7), que também participava dela, anunciou, categoricamente, no Jornal de Alagoas: “O Caetés cruzam a modernidade”.
[4] Expressão neologística, criada pelo poeta paulistano Augusto de Campos, está contida no livro Despoesia (1984).
[5] Penso aqui nas questões de historiografia colocadas por François Dosse, em seu livro A história em migalhas: dos Analles à Nova História (Ed. da UNICANP/ Ensaio).
[6] Slogan da propaganda do turismo na Maceió dos anos 1980.
[7] Expressão composta, criada por Ricardo Maia, em 1987, durante a produção cultural da 1ª Jornada: “A nova e a novíssima pintura alagoana” das Mostras Alternativas “Cruzadas Plásticas”. Confira o catálogo amarelo desta. Ao menos no período em que duraram tais mostras alternativas do vivarto-cruzadismo, a expressão “vanguarda-caeté” foi difundida, inclusive, pelo jornalismo cultural da Maceió dos fins da década de 1980.
[8] Expressão derivada da palavra neologística “Vivarte”; palavra este que, por sua vez, denomina um grupo criativo que surgiu, na Maceió-artística dos anos 1980, liderado pela então pintora abstracionista pioneira Maria Amélia Vieira. Vale lembrar que, em 2006, o crítico de arte alagoano Lincoln Braga Villas Boas publicou seus “textos de intervenção cultural na Maceió-artística da pintura (1992-2004)”, em livro intitula “Testemunhos do vivartismo” (Edições Catavento).
[9] Uma definição de “vivartismo” bastante difundida, em suas redes sociais (Instagram e Facebook), por Ricardo Maia: autor de dissertação de Mestrado, defendida na PUC-SP, intitulada: Um grupo chamado Vivarte: um estudo dos espaços de autoposicionamentos mini-políticos na organização retrospectiva do movimento vivartista (1984-1997).
[10] Expressão composta, derivada de “vanguarda-caeté”, para designar, na Maceió-artística da visualidade dos anos 1980, o modernismo retardatário e particularmente alagoano produzido sócio-historicamente.
[11] Cf. esta expressão nos livros O Poder Simbólico e A Economia das Trocas Simbólicas, do sociólogo francês Pierre Bourdieu.
[12] Entendemos que, no vocabulário guattariano, a noção de “subversão semiótica” é correlata à ideia bourdieuana de “subversão simbólica”.
[13] Esta seria um tipo simbólico ou semioticista (e, portanto, micro-político) de revolução de conchavo. Pelo menos, sim, no caso brasileiro; pois segundo o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (2017, respectivamente p. 82 e 81), seria aquela “revolução” (entre asas mesmo!) na qual “sempre foi uma camada miúda e muito exígua que decidiu. O povo sempre está inteiramente fora disso. As lutas, ou mudanças, são executadas por essa elite e em benefício dela., é óbvio.” Em outras palavras, e ainda na perspectiva sociológica de Buarque de Holanda, seriam “todas as revoluções dentro da história do Brasil [que] foram de elite. E, quando a questão se restringe a querelas elitistas, o processo caminha como uma briga de família: aparece um primo, um tio ou um amigo da família com bom relacionamento com ambas as partes capaz de contornar diplomaticamente o confronto direto. E é exatamente no conchavo que pode surgir a figura do homem cordial. […] A cordialidade continua valendo para a nossa história.” E Buarque de Holanda arremata, acrescentando: “Critica-se muito, mas poucos entenderam o verdadeiro sentido da expressão homem cordial. Quando falo cordial, não é no sentido de ‘cordiais saudações’, como Cassiano Ricardo o fez. A cordialidade com que caracterizei o brasileiro pode ocorrer mesmo em situações de confronto, fatos comuns em nossa história. Nesse sentido, ela tem sido incruenta.”
[14] Essa, portanto, seria uma “percepção” que, de acordo com Pierre Bourdieu (1987, p. 283), “enfatiza os únicos traços esteticamente pertinentes, a saber, tendo em vista o universo das possibilidades estilísticas que caracterizam uma maneira particular de tratar as folhasou as nuvens, isto é, um estilo de representação onde se exprime o modo de percepção de classe, de uma fração de classe ou de um agrupamento artístico.”
[15] Ver aqui a nota de número 13.
[16] Cf. na Internet os versos da canção “É cor de rosa choque”, de Rita Lee & Roberto de Carvalho.
[17] Expressão metafórica para designar aobra semi-abstracionista ou meio kandinskyana, pois não seria 100% abstrata por conter, em seu espaço pictórico, algum elemento explicitamente figurativo ou algum efeito gestualidade pictural que que dê margem à estimulação de pareidolias no espectador leigo.
[18] Ver nota anterior à esta.
[19] Noção existente na obra do pensador francês contemporâneo Edgar Morin que constituiria uma epistemologia pós-moderna.
[20] Esses conceitos, em Bauman (2021), se opõem dialeticamente; portanto, a modernidade líquida é totalmente oposta à modernidade sólida. A modernidade líquida, na teorização sociológica de Bauman, se inicia após a Segunda Guerra Mundial, porém só ficando evidente na década de 1960. Mas é no início do capitalismo industrial, durante a Revolução Industrial, que a sua semente é encontrada. A agilidade caracteriza a modernidade líquida, e esta acompanha a moda e o pensamento de época. Nela tudo o que foi criado pelo ser humano, para compor a sociedade, é submetido à lógica capitalista do consumo.
[21] Descritores linguístico do conjunto tripartite da obra exposta, por Eva Cavalcante, na sua mostra Jardim de Eva. Ao meu ver, é essa tripartição, estruturada pela organização pós-modernista do “Jardim de Eva”, que — ao apresentar a artista também como fotógrafa — negligencia o foco no legado mais significativo de Eva Cavalcante à arte alagoana — desde que ela iniciou sua trajetória criativa: seu abstracionismo pictórico absolutista. O que tende obnubilar ou mesmo liquidar, de modo tipicamente pós-moderno, o difícil processo de reconhecimento social do modernismo estético kandinskyano na esquecida história da visualidade artística alagoana.
[22] Um dos cinco espaços de autoposicionamentos mini-políticos da organização retrospectiva do movimento vivartista (1984-1997), pressuposta por mim. Em minha pesquisa de mestrado sobre a psicologia social desse movimento, entendemos por “organização retrospectiva” o modelo estruturo-analítico do campo vivartístico total, rememorado pelos sujeitos sociais que estiveram presentes nalguma reunião do Grupo Vivarte (1984-85) — por um ou outro motivo. Na organização retrospectiva do Grupo Vivarte, os “vivartistas convictos” constituiriam um subgrupo (ou quase grupo) de seis ex-participantes do Vivarte. Dentre estes, cinco são do sexo masculino (80%) e apenas um do sexo feminino (20%). Ao transformarmos este número total de participantes em percentual, verificamos que o subgrupo dos “vivartistas convictos” possui o menor percentual (10%) da população da referida organização, e, por isso, ele representa a menos região oposta no mapa minipolítico desta mesma organização mnemônica. Aliás não só: tal região é a mais central tanto do polo vivartístico quanto do todo organizacional retrospectivo do Vivarte, que, como já sabemos, é composto pela pentíade de quase-grupos por mim cartografado em minha pesquisa acadêmica. (MAIA, 1999, p.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E HEMEROTECÁRIAS
BARROS, Alice & PASAN, Milla. “Eva Cavalcante, em seu jardim […]”; texto curatorial de parede da exposição de arte visual Jardim de Eva, 2022.
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HOLANDA, SÉRGIO Buarque de. A democracia é difícil: As observações e as conclusões de um especialista com base no exame da história. Entrevista concedida a João Marcos Coelho em 28 de janeiro de 1976. In: VEJA: A história é amarela: uma antologia de 50 entrevistas da mais prestigiosa seção da imprensa brasileira. / editado por Fábio Altman e Rinaldo Gama. São Paulo: Abril Comunicações S.A., 2017.
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VILLAS Boas, Lincoln. Testemunhos do vivartismo: escritos de intervenção cultural na Maceió-artística da pintura (1992-2004). Org. Ricardo Maia. 1ª ed. Maceió: Catavento, 2006.