Ou: Nilson Nobre, um poeta arapiraquense nas esquinas dum apartamento maceyorkino
Ricardo Maia
“Num apartamento / Perdido na cidade / Alguém está
tentando acreditar / Que as coisas vão melhorar / Ultimamente.”
(Luiz Sérgio e Rita Lee in Lá vou eu)


José NILSON NOBRE filho nasceu na nordestina Arapiraca, município da região central do estado brasileiro de Alagoas, em 23 de fevereiro de 1996, num hospital da cidade. Quando menino, já era um contador brincante de histórias. Mas o desejo de escrevê-las com senso de literariedade, ou clara ideia de literatura como missão, só eclodiria nele, na adolescência, quando Nilson decidiu aventurar-se na escrita de fanfics: gênero de narrativa literária ficcional (pode ser também grafada como fanfiction) que inicialmente, segundo a Wikipédia, era produzida a partir de uma determinada história criada por terceiros e divulgada por fãs em fanzines impressos sem caráter comercial ou lucrativo e, posteriormente, publicadas em blogs, sites e outras mídias ciberespaciais.
Mesmo aficionado assim pela cultura da fanfiction, Nilson nos conta hoje que nunca concluiu os romances iniciados. No entanto, entre uns e outros, ele viria a encontrar e reencontrar a poesia e a crônica: duas formas lacônicas de expressão artística que ele logo perceberia como suas favoritas, em matéria de funcionalidade criativa. Tanto e de fato, que até já faz um tempão que ele escreve poesias e crônicas, e sempre enfim as publica, na plataforma Medium (cf. nilsonnobre.medium.com).
Mas a criatividade em Nilson Nobre não se restringe apenas e tão somente à literatura, onde, de acordo com ele, “o sentimento encontra a palavra e vira verso.” (p. 22) A criatividade nele se evidencia também em seu talento para a arte visual, o cancionismo e/ou a música. Não é à toa que seu livro, que será aqui analisado e comentado, foi ilustrado por ele próprio desde a capa à contracapa. A visualidade artística, por exemplo, se encontra neste referendada e homenageada por ele especialmente nos versos de “COR” (sic); vejamos o que Nilson escreveu nos dois trechos seguintes: “entre os dedos / o pincel / na tela / sob lágrimas / depois da água / a cor […] minhas cores / preenchem / o branco / disfarçam / o cinza / sinalizam a vida / mesmo diante do fim” (p. 111).
De acordo ainda com Nilson Nobre, seus versos foram escritos “ao longo dos últimos dez anos, entre os sons das casas e o silêncio dos apartamentos” (p. s/n) onde ele morava em Maceió. Tais textos eram escritos poéticos espalhados por cadernos e blocos de notas pessoais. Nos entanto, todos destinados “a tomar forma de livro” (p. s/n), constituindo, no final das contas, “o recorte / de um cotidiano / melancólico […] em que eu, junto da humanidade” — com ainda nos relata este poeta arapiraquense — “me isolava nas esquinas do meu lar, devido a pandemia de covid-19.” (p. 33 e s/n, respectivamente). Não é à toa, portanto, que neste seu exemplar testemunho literário do lockdown global, contra o famigerado covid-19, Nilton arremate essa sua fala dizendo mais: “Em tempos de falta de ar, com tantas perdas e lutos a serem elaborados, escrever e revisar estes textos me ajudou a respirar, bem como a permanecer são, apesar do caos.” (p. s/n)
Radicado em Maceió desde meados de março de 2015, após ter conquistado uma vaga no Curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), atualmente Nilson Nobre encontra-se na reta final do Curso de Mestrado em Psicologia nesta mesma instituição de ensino superior. “Escolhi cursar em Maceió por querer sair do interior. E vivenciar outras experiências fora da casa de meus pais”, nos conta ele. Quem quiser saber um pouco mais sobre o jovem poeta arapiraquense, é só, inclusive, acessar sua página no Instagram. Ele encontra-se na referida plataforma como @nilsonnobre.
Eu próprio fiquei sabendo da existência de Nilson Nobre pelo psicólogo Ascânio Costa, um amigo nosso da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió. O Projeto Farmácia Viva, que Ascânio criara e desenvolvia com êxito, numa Unidade Básica de Saúde (UBS), no bairro do Tabuleiro do Martins, periferia de Maceió, foi o que estimulou Nilson, enquanto acadêmico de Psicologia, a visitar várias vezes, como “cartógrafo”, essa mesma UBS. E fascinando-se então por aquele projeto, Nilson tomou enfim a firme decisão de realizar sua investigação acadêmica na mencionada UBS. “E foi uma das experiências mais marcantes da minha formação psi”, ele nos relata ainda, acrescentando:
Inclusive meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso]partiu dessa experiência. Foi um relato de experiência acerca do projeto Farmácia Viva. Eu [nele] discuti sobre tecnologias leves e duras em saúde, a partir das contribuições teóricas do Merhy. Discorri a leve. O método foi a cartografia!
A decisão de Nilson de fazer o Mestrado aconteceu paralelamente ao momento em que ele organizava o seu primeiro livro de poesias, que será lido e analisado mais adiante, neste ensaio, por mim. Sua proposta no Mestrado, segundo ele ainda,
é estudar sobre a família homoparental adotiva. Mais precisamente o desenvolvimento das relações familiares pós-adoção. Então inicialmente a ideia era dialogar com toda a família. Mas agora o foco vai ser [apenas] nos pais e mães, pois foi o público que consegui como voluntário. Aí tô trabalhando nisso ainda, tenho até o dia 31 de maio de 2022 para qualificar. Para a defesa [da dissertação] ainda não tenho data. Mas provavelmente será em março de 2023, se tudo der certo.
O primeiríssimo texto literário de Nilson Nobre (“um conto”, de acordo com ele), publicado em livro, fora devido a um concurso que ele participou representando Alagoas em âmbito nacional. Nilson, na época, era ainda estudante do Instituto Federal de Alagoas (IFAL de Arapiraca-AL). O prêmio dado pela da Presidência da República era denominado Construindo Igualdada de Gênero, e fora lançado pela extinta Secretaria da Políticas Pública Para As Mulheres. Angariado tal prêmio, este lhe rendeu a publicação em um livro que é, e será sempre, muito importante em sua trajetória cultural como escritor.
Outra precoce conquista de Nilson Nobre foi a sua admissão formal, como poeta e contista, na plataforma Medium (cf. nilsonnobre.medium.com): uma organização híbrida virtualizada, criada em agosto de 2012 por Evan Williams, co-fundador do Twitter, para publicações do jornalismo profissional pago e, também, de contribuições não-profissionais (cf. Wikipédia). Aliás, não só: recentemente, Nilson recebeu convite dos editores do Portal Fazia Poesia, criado em 2016 por Alex Zani, para participar de uma antologia literária junto à equipe de poetas deste. “O tema é sempre livre”, garante o poeta arapiraquense.
Vale notar aqui, também, que foi o psicólogo Ascânio Costa quem enviou à mim o convite virtual para a noite de lançamento desse primeiro livro de Nilson Nobre; que enfim aconteceria, depois dum adiamento por conta do covid-19, em 05 de fevereiro de 2022, às 20 horas, no pub Bazarte: um espaço perfeito para a reunião da novíssima boemia literária alagoana, situado na Avenida Comendador Leão, n. 69, no bairro de Jaraguá. Houve ali, na ocasião, como a programação previamente anunciava no convite: bate-papo e sessão de autógrafo com o autor; performance artística com Marcos Topete; apresentação musical de Ulisses Izidório e DJ Set de Manuel do Amor.
O livro de estreia do poeta Nilson Nobre, Nas esquinas desse apartamento (Ed. Patuá, 2021, 136 pág.), que aqui será lido e analisado logo mais a seguir, se divide em “PRÓLOGO” e “EPÍLOGO”. O primeiro, subdividindo-se em três partes: a primeira intitulada “Entre paredes e silêncios”; a segunda, duplamente denominada “Nos (in)cômodos, (des)encontros”; e a terceira “Perdas sob a mobilha”. Seguido o epílogo, três “APÊNDICES” cancioneiros registram e guardam ambíguas “Canções de (des)amor” — e, por isso mesmo, plenas de antinomias pós-modernas — intituladas “MAIS ALGUNS MINUTOS”; “AFETO” e “AMOR”.
Naquele pub maceyorkino, sobre uma bancada fixada na parede esquerda e decorada, havia dois diferentes montículos (um preto, vazado pelo branco; e o outro branco, vazado pelo preto) de exemplares paralelamente dispostos, do livro de Nilson, carregavam à enésima potência sua poética do pós-modernismo. E cada um deles ali, por sua vez, pareciam oferecer-se comercialmente às preferências estéticas de seus potenciais leitores-compradores; tipo assim: “Black or white”? Era o preto no branco e o branco no preto. E isso, na certa, para fazer referência — tão implícita quanto micropolítica — àquela canção de Michael Jackson (1958-2009) na qual ele diz num refrão relativista: “Seja negro, seja branco / É difícil para você sobreviver (é, é, é)”.
E no único exemplar que naquela noite pude adquirir, alguns minutos depois o poeta arapiraquense, em Maceyork, escreveria em dedicatória autografada para mim: “Ricardo, que estes versos possam fazer morada nas suas esquinas. Depois me conte como o livro chegou em você! Abraços, Nilson 05/02/22”
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Pois bem. O que podemos dizer da poética de Nilson Nobre, após termos lido esse seu primeiro livro, tendo como base teórica inicial o estudo acadêmico de Raquel Villardi Miranda (1987) sobre “LIRA E ANGÚSTIA” na poesia alagoana contemporânea?
Ora, decerto que sua poética é tradicionalmente lírica; isto é: autorreferente, de discurso egóico e emocional a nos falar da impossibilidade de dizer. Uma impossibilidade, contudo, que está sempre associada ao lirismo para justamente reconhecê-lo, e poder enfim falar do amor (ou melhor dizendo: do amor que hoje já se orgulha de dizer seu nome) inscrevendo este numa certa lógica simbólica, enquanto confirma a hipótese de Lacan (citado por Miranda [1987, p. 8]) de que o ato poético é da ordem da transmissão de uma verdade: “na poesia / um modo / de dizer [já que] não sei / te dizer / o que tenho [para falar. Então,] hesito e me calo / enquanto grito por dentro / [já que] se eu disser que te amo / vou gerar constrangimento [, pois] eu sou / o que me resta / ser /// com / e apesar / de você” (respectivamente, p. 106, 71 e 103).
É nestas e noutras representações literárias, onde Nilson Nobre nos mostra a presença da temática da homoafetividade, que ele demarca, na produção histórica da poesia alagoana contemporânea, uma linha fronteiriça que o distingue radicalmente de alguns poetas caétes, de gerações anteriores a dele, com discurso heterocentrado. E Nilson faz isso com aquela força típica das chamadas “minorias ativas” (MOSCOVICI, 1989, p. 58). Uma força micropolítica que o capacita a exprimir-se de modo transparente e coerente; repetitivo e sem concessão, a nos revelar assim, heroicamente, sua escolha existencial decisiva: “não ficarei guardado / no armário do meu quarto” (p. 65).
Posto isto, vemos então, nesta coisa dita por Nilson Nobre uma autoria poética dissidente, um poeta gay, subversivamente micropolitizado e militante, a nos informar sobre si mesmo e/ou sobre o universo simbólico da cultura LGBT na Contemporaneidade. Claudicélio Rodrigues da Silva (2020), da Universidade Federal do Ceará, analisando uma pioneira antologia de Poesia Gay Brasileira (1917), diz o seguinte sobre personalidades criativas como a de Nilson:
A palavra dissidência tem sido utilizada no lugar de minorias para inserir no debate a perspectiva dos que assumem o contradiscurso como força operante de suas vidas. O dissidente é o sujeito subversivo por excelência, que constrói para si percursos outros, bem destoantes dos hegemônicos. Ele não apenas dribla normas e territórios minados por estruturas excludentes, como traz para si a responsabilidade de atravessá-los, ocupando-os e produzindo objetos em que se posse ver. As palavras que orbitam o vocabulário “dissidência” podem ajudar a compreendê-lo, mas sem delimitá-lo: das práticas discursivas de um sujeito insurgente, mas da construção de saberes sob as perspectivas dos atravessamentos e das interseccionalidades.
Entretanto, é também interessante notar, e ainda embasados na citada teorização de Miranda (1987), que embora sejam notáveis as singularidades formais entre o imaginário poético de Nilson Nobre (1996-) e as representações literárias de poetas alagoanos de gerações anteriores à dele , a poesia de Nilson, bem como a destes, apresenta idênticas preocupações que acabam servindo-lhe como uma espécie de passe, ou senha, para seu ingresso definitivo, também e inclusive, na ilustrada comunidade de escritores locais. Escritores estes destinados a observarem, num sublime exercício de cidadania participativa, o mundo psicossocial do Brasil das Alagoas. Mas especificamente no seu “Paraíso das Águas” : Maceió. Tal passe, ou senha, é sem dúvida, como observaria Raquel Villardi Miranda (1987, p. 13), “o binômio terra/mar”. Os versos de Nilson Nobre que estariam a nos indicar tal binômio, na certa seriam os seguintes: “Conversamos sobre / a caótica e hostil situação política / no Brasil / eu te mostro / aquela canção / da Marina / e te conto / do meu desejo / de ter um apartamento / com vista / para o mar” (p. 58). Um apartamento, portanto, desejante e que seria bem mais do que um sonho de consumo do poeta arapiraquense em Maceyork; mas, também e sobretudo, como diria dele Christian Dunker (2021, p. ?): “[…] uma metáfora entre o mundo lá fora e o micromundo dentro dele.” (Grifo em itálico meu)
Eis, em outras palavras, e ainda de acordo com Dunker (2021, p. 10): “[…] um espaço artificial intramuros, expropriado do espaço que seria público, e onde se imagina que a vida segue para aqueles que merecem viver, enquanto os que estão do outro lado do muro são quase-pessoas, atrapalhando a vida de quem está dentro. Essa é a proposta explícita da democracia customizada para poucos.” (Itálico meu)
Na perspectiva psicossocial da poética de Nilson Nobre, a sociedade brasileira atual é exatamente esse “caos diário” (p. 39) que produz, historicamente, uma “política de morte / prenúncio de emboscada” (p. 39) que alimenta “entre crises existenciais e políticas / as mortes que não se lamenta” (p. 39). No entanto, esse estado de coisas não é de modo algum apanágio de uma sociedade hostil. Sobretudo em dias pandêmicos onde a natureza e alguns de seus agentes deletérios e potencialmente letais — como, por exemplo: o covid-19, o HPV e a AIDS, dentre outros — atuam como colaboradores no incremento de tal situação. O que torna todos os espaços socias constantemente ameaçadores; assim como, também, toda e qualquer interação humana neles. Especialmente, as mais íntimas e pessoais. Mesmo quando estas ocorrem em espaços localizados nas mais seguras zonas de conforto urbano e privacidade exclusiva: “a chuva / que molha / e escorre no vidro / da janela /// alerta que não há / o que fazer / além de permanecer / vendo novela /// a chuva / que cai / e do céu / me torna / sentinela /// faz lembrar / que a vida / sendo boa / ou doída / carece de cautela.” (p. 110)
Mesmo assim, nos dias contagiantes e deletérios que correm, o poeta arapiraquense, em seu apartamento maceyorkino, teima em afirmar heroicamente: “existo / do avesso / sem escudos / pra alma” (p. 44); e, portanto, pleno de individualidade soberana, ele diz mais: “Eu me permito ser vulnerável” (p. 57). Mas quando “a cigarra / na lavanderia / principia / a realidade” (p. 35) ele mergulha em funda introspecção autocrítica por insegurança de interagir, com o outro, nesta realidade principiante: “sinto-me covarde / por encará-la / como a um / inimigo /// corro perigo? / o que temo / no que / desconheço? /// disfarçando / o desespero / em minutos / de silêncio / segundos / de tensão /// no chão / asas abertas / se debatem / num pedido de socorro /// eu, morto / ceifo a vida / sem saída / em repetição” (p. 35).
Nos meses pandêmicos e bolsonaristas que passamos, o resultado desse “caos diária” (p. 39) é o apagamento radical da fronteira entre o público e o privado. O que levaria esses dois diferentes espaços a se geminarem na surrealidade do cotidiano do poeta. Daí o título aparentemente absurdo, pleno de non sense, do livro: “NAS ESQUINAS DESSE APARTAMENTO”; porém, a conferir sentido consistente às dilemáticas situações vividas entre o público e o privado nas sociedades complexas: “eu hesito em dizer: /// Não quero me expor […] que paradoxo há nesse ambiente: / mesmo online / me sinto ausente”.
A linguagem virtual, assevera Christian Dunker (2021, p. 12), trouxe consigo, para os dias atuais, o incremento da solidão. Então, para compreendermos melhor esse sentimento de autoausência no poeta arapiraquense, em Maceyork, vale lembrar aqui, de passagem, a seguinte hipótese desse teórico da chamada “cultura do condomínio”: “[…] junto com o neoliberalismo,” pressupõe ele, “a linguagem digital trouxe uma parasitagem do espaço público pelo privado e vice-versa. Não é o privado que é destruído, mas a intimidade entre o eu e o outro. Na intimidade, não é preciso haver os mesmos traços de identificação, mas estar junto nas experiências de indeterminação, em uma viagem que não se sabe aonde vai dar.” (DANKER, 2021, p. 12). Essa cultura do condomínio, de acordo ainda com Dunker (2021, p. 14 ), “é uma cultura que pune quem não está na rota do narcisismo.” E falando freudianamente de “uma verdade recalcada do Brasil”, Dunker (2021, p. 11) diz, nos esclarecendo mais ainda, que “o condomínio não é o outro mundo, é o nosso, que não queremos ver. O mundo da exclusão, da violência, do preconceito.”
Mas o poeta Nilson Nobre enxerga-o. E o enxerga em todos esses aspectos. Então, tão ciente quanto Dunker (1921, p. 10) de que vivemos uma sintomática e narcísica “cultura do condomínio”, ele imbui-se dum missionarismo cultural compulsivo de escrever versos íntimos para serem publicados em livro. E neste processo, é interessante notar, Nilson Nobre se reconhece autovocacionado-se para tanto assim: “eu me permito ser vulnerável”; ou seja: ex-posto; mesmo encontrando-se “perdido / no espelho / sem saber / como parar”. Na certa por isso ele até pagaria do próprio bolso, se bastante dinheiro tivesse, só para ver seus livros publicados em diferentes mídias; confirmando desse modo a máxima nelsonrodrigeana de que nasce-se poeta assim como se nasce violonista, taxista ou prostituta: “te encontro lá / onde o pensamento / recrimina / o sentimento que margeia /// nas ruas / da cidade / onde a política / incendeia /// nas esquinas / desse apartamento / onde a memória / vagueia” (p. 102).
E é portanto “lá”, exatamente “nas esquinas” desse seu apartamento maceyorkino, do poeta arapiraquense, que o Real, o Imaginário e o Simbólico lacanianos se intercambiam na surrealidade do cotidiano dele, fundindo e confundindo, inclusive — num deliberado pastiche literário da barata clariceana, por exemplo — “a cigarra” enquanto inseto ou signo de natureza e “a [outra] cigarra” enquanto campainha de seu apartamento; portanto, enquanto signo de cultura. O que sem dúvida geraria no poeta um “DELÍRIO” (p. 31) que ele, ao fim e ao cabo, sempre transforma em poesia-escrita: “atrás das pálpebras / coberto de sonho / caminho em delírio / suspenso no vácuo / o corpo disperso / por paredes / cercado” (p. 31).
Aqui podemos pressupor que esse “apartamento” surrealisado, e ocupado em Maceyork pelo poeta existencialista de Arapiraca, é, para ele, análogo ao programa Big Brother Brasil. Ou o protótipo do dramatúrgico Huis Clos sartreano, e, por isso mesmo, um “cenário / onírico submundo / de desejos velados” (p. 30). Ou ainda uma espécie de estranho cubo quântico, de alguma experiência científico-militar top secret, que só fôra vista, até agora, em filme hollywoodeano de ficção-científica; pois em tal “cenário” — espaço de difícil adaptação a um cotidiano diferente: “às vezes, / sinto / que não caibo” (p. 33) — o poeta se vê nele como estivesse num pesadelo: “atravesso portas / que me levam / a lugar nenhum / vejo através de janelas / que não revelam / paisagens /// apenas outros / temidos gigantes / que intimidam / minha pequenez / e escancaram / a fragilidade / da lucidez / em que me / refugio” (p. 31).
Ao fim e ao cabo deste pesadelo, e não à toa, o poeta conclui sobre a própria existência: “ando por um fio / aquém das queixas / refém das fórmulas / sangrando / pelas bordas / mesmo antes / de despencar / no vazio” (pp. 31-32). Porém o amor e/ou a amizade, no País do Carnaval (e sobretudo também dos teatrinhos sociais), talvez possam ainda ser de fato matéria de salvação. E então, numa noite de folia de Momo, querendo “sentir meu corpo em movimento” (p. 77), como ainda nos relata o poeta, solitariamente ele deixa seu apartamento maceyorkino, usando máscara, em busca de si mesmo e do outro. Mas apenas com aquela típica “máscara” contra o famigerado covid-19 e suas novas cepas mais virulentas: “na rua / o baile / de máscaras / eu atrás / de uma / da tua / na sua /// na lua / querendo / o além / querendo / ser eu / não alguém /// mas quem?” (p. 79)
Essa questão finalizando tais versos — uma questão tão delicada quanto a duma canção da Françoise Hardy dos inícios dos anos 1970 — é indicativa da intensa preocupação dum poeta-flâneur com os perigos dos amores contingentes em seu caminho. Todos eles amores líquidos — ou senão mesmo liquidados! — a gerarem derivas identitárias que sempre tornam periclitante o “itinerário” de seu viver poético-romantista na contramão da modernidade baumaniana; isto é: líquida-e-liquidificadora: “Sabe, às vezes, eu queria ser alguém que não eu, mas se assim eu não fosse, quem eu seria?” (p. 77). E o poeta diz mais, caindo na “roda da angústia” (p.3): “Eu quero parecer confiante, como você acredita que sou. Quero ser calmo, como você me define. Alguém mais estável, mais amável, talvez impenetrável.” (pp. 76-77)
Vemos nestes versos acontecer, com o poeta arapiraquense, a mesmíssima coisa acontecida aos poetas alagoanos estudados por Raquel Villardi Miranda (1987, p. 28) na perspectiva freudo-lacaniana: o texto poético oscilando, sempre, entre a necessidade de dizer e a incapacidade de fazê-lo. A angústia, enquanto sintoma, pairando por sobre o texto poético e se afigurando como sua marca. Uma angústia que é indicativa da falta de domínio do sujeito poético, que se confunde com a falta de domínio do sujeito amante. Fato subjetivo este que torna o texto lírico denso e melancólico, porque, ao mesmo tempo em que se afigura como tentativa, se assume como impossibilidade de dar conta do desejo, o que é a própria e histérica angústia, residindo no ato de escrever, dando conta, portanto, da histericização necessária a ele. E nesse processo a angústia transparece porque, na escrita, como assevera J. Lacan (citado por Miranda, 1982, p. 76), “o que se diz está oculto pelo que se ouve”.
Daí por que, como conclui Miranda (1987, p. 28): “O texto poético, ao falar o amor e o desejo, se afigura como mecanismo de burla. Enganar é dizer um domínio que não existe, pensar/tentar realizar o desejo com palavras, e, na tentativa, de suprimir a falta, terminar por destacá-la.” E isso é exatamente o que podemos verificar, por exemplo, em “FALTA DE AR” (p. 42), poema que alude a um efeito da pandemia viral do covid-19 no psiquismo dos brasileiros; mas isso, decerta, apenas em nível de conteúdo manifesto literatizado; vejamos:
a falta de ar
no constante
inacabar
das circunstâncias
é como ver
o tempo passar
sem poder
sair para olhar
como andar
em círculos
que sempre
terminam
no mesmo lugar
à beira
de um abismo
cego do risco
de uma existência
suspensa
no ar.
POETA ROMÂNTICO NA CONTRAMÃO DA MODERNIDADE – Através dos tempos, nos ensina Raquel Villardi Miranda (1987, p. 36), o texto lírico que se tenha como proposta tratar do amor sempre esbarrou na impossibilidade. O texto lírico produzido por Nilson Nobre, portanto, não escapou desse esbarroamento. Em consequência disso, três décadas e meia depois desse estudo de Miranda sobre poesia alagoano contemporânea, o poeta arapiraquense reproduziu, numa espécie de cultura-alma obsessiva, o mesmo comportamento literário dos poetas caetés analisados por ela. Comportamento esse que Nilson parece reconhecer, de modo mais ou menos inconsciente, quando escreve os seguintes versos: “[é] como andar / em círculos / que sempre terminam / no mesmo lugar” (p. 42). Ou ainda quando ele nos fala sobre “a vida / sem saída / em repetição […] preso / dentro / de minha / cabeça /// maquinando / o domínio / daquilo / que não sei” (p. 35 e 46, respectivamente).
Não é por acaso que essa reflexividade existencialista do poeta — um “pensar íntimo / onde tudo deságua” (p. 72) — parece culminar nos versos de “FUTURO” (p. 49), através dos quais ele se autoavalia, em profunda introspecção poética, considerando a implacável e mutante relação entre ser e tempo; mas “como alguém / que não compreende / tampouco aceita / que a vida é impermanência” (p. 93). E então ele diz mais: “os passos / que me movem / não saem / do lugar /// o futuro / me absorve / com pressa / de chegar /// do corredor / ao banheiro / do quarto / à sala de jantar /// me encontro / perdido / no espelho / sem saber / como parar.” (p. 49)
Tentando assim entender a experiência do “Tempo” (p. 107) e sua relação com ele, o tempo dos relógios e dos calendários, o poeta arapiraquense procura pensá-lo, inclusive, enquanto “Futuro do pretérito” (p. 109). Porém, sempre ciente de que tudo está em perpétuo movimento; e que o homem existe em formas diversas de entendimento. Formas estas criadas e recriadas — algumas até que já foram esquecidas! — em sucessíveis agoras ao longo dos milênios. Essa consciência, aliás, é o que o faz desejar “mais alguns minutos” (p. 61) enquanto ele enuncia, poeticamente, sua urgente escolha existencial diante das vicissitudes do desejo nele próprio: “não quero pensar / se deveria / se poderia / se amaria /// lamentar é selvageria / com o meu limite / o meu momento / o meu afeto /// eu quero / é uma vida / mais presente / em que o futuro / seja pra frente / não do pretérito.” (p. 109)
Ora: não é por acaso que na poética de Nilson Nobre a subjetividade não está, necessariamente, à serviço exclusivo de um Narciso “perdido / no espelho / sem saber / como parar” (p. 49); ou seja: ainda que nossa cultura encoraje nele e em cada um de nós os traços narcísicos, seu eu-lírico não se desliga da vida social ao longo da História. O poeta, portanto, jamais se retira totalmente para o campo da interioridade (“a mais falsa das categorias”, segundo Richard Sennett [1989, p. 82], autor de O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade). O que decerto leva sua poesia a restaurar o espírito público na dimensão, por excelência, do privado: o “lar” do poeta, um “apartamento” bem na linha fronteiriça entre o público e o privado. E é exatamente neste sentido pós-modernista — e, portanto, inconscientemente blefante — de “intimidade” que a poética de Nilson reflete, com linguagem literária, todas as precondições de uma sociedade atualizada na velha Alagoas de sempre. O que explica, inclusive, a alusão aos fenômenos macropolíticos em seu projeto literário intimista-autobiográfico (um projeto, note-se de passagem, que parece ter pelo menos dois objetivos; a saber: “[…] abraçar a angústia que me corta, mas também me movimenta” e “[…] compreender a vida como esse inconstante sustentar de ausências.” [p. 120]); ou o fato de que a solidão, na sociedade pós-moderna, não consegue mais ser oposta à solidariedade; pois na certa, para Nilson Nobre, toda poesia, assim como a estética, é pública: “a palavra / singulariza / o afeto / radicaliza / o ato / preenche / o verso / potencializa / a vida.” (p. 105)
Esse reconhecimento das interações funcionais quase-mágicas entre palavra e afeto — isto é: entre verbo e vida a radicalizarem o ato —, é a afirmação, no mundo vivido, da busca do poeta por uma coalizão micro-histórica entre poesia e política. Para quê? Para que só assim ele possa viver o amor nos termos de Alberoni; ou seja: “como um movimento coletivo à dois.” (Francesco Alberoni citado por DESCAMPS, 1989, p. 110). Pois de acordo com Nilson Nobre: “o amor [romântico] há de vencer / apesar deste cenário.” (p. 65) Um cenário onde, infelizmente, “no Brasil / nesses tempos / sombrios / em que os violentos desfilam / de corpos esguios / enquanto calamos e fingimos corações vazios.” (p. 40)
Mas no palco social do cotidiano pandêmico globalizado, este “cenário”, como já dissemos, é aquele do Huis Clos sartreano. Em outras palavras, é um espaço geométrico das contrariedades; isto é, de solidão e solitude; de homens domésticos e homens selvagens; portanto, de amores contingentes e amores necessários (a imensa maioria deles contingentes!). É um espaço, enfim, onde o poeta neoromântico, em profundo mal-estar na cultura, transita melancolicamente na contramão da “modernidade líquida” de Bauman. Um experiência que Nilson Nobre registra, em seu viver poético, assim: “entre paredes / há milênios / dias de tédio / outros em silêncio /// o peso do cansaço / sobre a cabeça / de certo / só a incerteza / do que há / e do que será /// em pensamento, / olhos no mar / o desejo genuíno / de asas pra voar / pra longe / de toda essa / monotonia.” (p. 34) E no “PRÓLOGO” (p. 21) de seu livro ele diz mais, em prosa poetizada: “Vazio, vago pelo apartamento. Sinto que preciso de repouso. Sinto que não deveria sentir essa nostalgia, pois é para frente que se anda. Ou se desanda.”
Artista vocacionado e centrado; portanto, um autêntico trabalhador criativo, o poeta arapiraquense, em Maceyork, impacta-se com a ausência de uma verdadeira intimidade entre ele e o outro. Uma intimidade de fachada que só corresponde aos teatrinhos societais particulares e à produção psico-histórica daquele “novo tipo de personalidade”. Uma outra sensibilidade — radicalmente antípoda à do poeta aqui lido — que, segundo Christopher Lasch (1989, p. 41), é requerido, na cultura pós-moderna, “por um novo modo capitalista”. De acordo ainda com Lasch (1989, pp. 41-42): “Essa personalidade se insere em uma família não superpresente, como no século passado [sec. XIX], mas superausente. Ela se define não pela ética do trabalho ou da contenção sexual, mas pela ética da sobrevivência e pela promiscuidade sexual. Ela é dominada não pela culpa, mas pela angústia, um sentimento todo-poderoso, mas mal-definido, de insatisfação, de tédio, de desejos insatisfeitos.”
Esse impacto, e as cintilantes reações literárias à ele que confirmam poeticamente esse exato contexto psicossocial descrito por Lesch, encontra-se registrado nos seguintes fragmentos do discurso amoroso de Nilson Nobre: 1°) “entre paredes / há milênios / dias de tédio […] de certo / só a incerteza / do que há / e do que será /// em pensamento, / olhos no mar / o desejo genuíno / de asas pra voar / pra longe / de toda essa / monotonia […] o tom blasé / dos dias / sob o céu / nublado / em sintonia […] as ruas / desertas / de tráfego / distorcida / utopia / em tudo / parado” (respectivamente, p. 34 e 38); 2°) “caio na roda / da angústia / e bailo leve / com o peso / de tudo que sou / nos ombros” (p. 73); 3°) “quero mais alguns minutos / te olhando assim / profundamente / sob as luzes / que vêm da rua / na escuridão / desse apartamento / mexendo na tua barba / até que meus braços cansem / arrumando pretexto / pra aninhar […] quero mais alguns minutos / desses em que / o mundo para / e somos só nós dois” (p. 61); 4°) “hesito e me calo/ enquanto grito por dentro / se eu disser que te amo / vou gerar constrangimento? (p. 64); 5°) “seus valores reacionários / prejudicam meu itinerário / mas eu não ficarei guardado / no armário do meu quarto /// as malas já tirei / no medo, dei despacho / minha viagem não será / um trajeto solitário /// não importa o que digam / nem a agenda política do atraso / o amor há de vencer / apesar deste cenário.” (p. 65); 6°) “teu lábio / ao desejo cedeu / ousou navegar / outro mar /// no batuque / o afeto rompeu / calou o sentimento / a pulsar /// eu prendi / o nosso amor / em meu peito / decidi / os olhos fechar / mesmo sentindo dor / quando deito / sem você / não quero estar.” (p. 70); 7°) “quando você partiu / na hora fria / do dia / apenas senti / impensável agonia” (p. 93).
Em As tiranias da intimidade, abordando o tema-tabu da relação entre o público e o privado, Richard Sennett, por sua vez, analisa a queda incontestável do homem público e a ascensão do homem privado no decorrer dos dois últimos séculos. Este teórico, para Pierre Dommergues (1989, p. 82), parece pressupor a valorização exclusiva do espírito público em detrimento da subjetividade, como se esta estivesse apenas a serviço de Narciso. Mas não. Na verdade, o que Sennett (1989, p. 82) mostra, neste seu livro, é que “a subjetividade se tinha desligado da vida social ao longa da História”, se tornando “um estado em si mesma”. O que a levou, em consequência, a ser “reduzida à dimensão psicológica”. O resultado disso, segundo ainda Sennett (1989, p. 82), foi a expulsão da imaginação e da estética da esfera pública. E a estética, para Sennett (1989, p. 82), “pertence ao público”.
Ora: não por acaso a poética de Nilson Nobre é perpassada, também, pelo tema-tabu da queda: “caio na roda / da angústia”, diz o poeta, “e bailo leve / com o peso de que sou / nos ombros /// esqueço e respiro / disfarço e danço / espero na música / o som / da direção guia / na estrada / rumo aos dias / de glória /// mas não pulo / fora da roda / quando, na madrugada, /// sou o pássaro azul / da gaiola / que não quer sair.” (p. 13)
Neste ponto é interessante notar também, e ainda na perspectiva de Lasch (1989, p. 41 e 47, respectivamente), que um “novo tipo de personalidade” requer, por sua vez, um “novo modo de controle social”. Um controle culturalmente determinante que dataria dos anos 1920: uma época
em que se passou da prioridade dada à produção e à produtividade à prioridade ao consumo. Tornou-se importante nessa época convencer as pessoas de que o campo da satisfação tinha se deslocado do local de trabalho para o local de lazer. A evolução reflete ao mesmo tempo a degradação do trabalho e a necessidade de criar um mercado para satisfazer novas necessidades. Procurava-se fazer aceitar a arregimentação cres propaganda publicitária, cujo objetivo é projetar imagens de satisfações totais e imediatas associadas ao consumo de bens, serviços e experiências. (LASCH, 1989, p. 43)
Dunker (2021, p. 14) por sua vez destaca, no entanto, que as “experiências culturais” (isto é: as vivências ilustradoras no campo da arte com seus serviços e bens de consumo: livros, filmes, peças de teatro, shows etc.) nos protegeriam, neste processo, das doenças mentais. Mas tudo isso, de acordo ainda com ele, dependendo das peculiaridades da relação de cada um com a leitura na qual busquemos aprofundar nossa capacidade de interpretar o mundo e nos localizarmos nele. Já Mário Ferrari e Paulo Henrique Pompermaier (2021, p. 8), entrevistadores de Dunker, ressaltam “a importância das experiências transformativas, como a implicação no outro, a narração da experiência traumática e os valores de comunalidade para perspectivar o futuro.”
Ora: tais experiências são o que jamais faltou, ou falta, a Nilson Nobre. O texto poética dele que talvez mais precisamente reflete, como efeito catártico de tais “experiências” (agora na estrita acepção negativa de Lasch!), em momentos mais íntimos e pessoais entre ele e o outro, tornado seu sujeito-objeto de desejo, seriam, em nossa leitura, os seguintes trechos de um lacônico texto autobiográfico, em prosa, intitulado, com fina autoironia, de “FANTASIA” (p. 6). Um texto no qual ele escreve na certa suspeitando de toda essa motivação social, assinalada por Lasch, oriunda de nosso entorno sócio-histórico. Uma motivação na verdade psicossocial — e, portanto, cultural e ideológica — a movê-lo sempre tão de dentro (de si mesmo e de seu apartamento maceyorkino), na direção do outro amado por ele:
Eu gosto quando você vem. Gosto de como você chega: bagunçando a noção que tenho do tempo, me fazendo deixar em suspenso os prazos, os dilemas, as queixas, os problemas… Mal sinto a tarde que corre em pressa. Dispersa como o meu corpo sobre o teu. […] Deitados no sofá, eu te sinto em mim: tua barba na minha nuca, o teu calor em minhas costas. Eu sinto que te tenho agora, sob os tons frios que cobrem a sala nesse momento. Quase esqueço o que sinto… quase esqueço o que penso, quando você vai embora e deixa comigo a dúvida sobre o que há por trás do sentimento. (p. 67)
Lesch (1989, p. 44), que também é autor de Abrigo em uma terra desalmada, diz não ter objeção ao conceito de intimidade. Nem à ideia de que cada um tem direito à sua vida particular e a relações pessoais. Mas o que para ele parece grave é que essas relações são deformadas, por substituírem o trabalho gratificante, e se tornam um meio de promover o consumo, aumentando assim nossa dependência em relação a necessidades cuja satisfação só se encontra no mercado. Deste modo, de acordo ainda com Lesch (1989, p. 44), o novo controle social — isto é: o chamado por ele “complexo de Narciso” (ou “cultura do narcisismo”, em tradução brasileira) — determina, sócio-historicamente, o declínio contínuo da autonomia: “amar / me revela / dependente” (p. 103), confessa e confirma o poeta arapiraquense em seu apartamento maceyorkino; e neste, numa interação social plenamente amorosa com seu amado, conversa com ele “sobre / a caótica e hostil / situação política / no Brasil”; e à ele, na sequencia desta, mostra “aquela canção / da Marina” — contando-o do seu “desejo / de ter um apartamento / com vista / para o mar” (p. 58).
Na experiência de Nilson Nobre como poeta migrante de Arapiraca à Maceyork, tal declínio de sua autonomia encontra-se relatado nos belíssimos versos de “RECORTE” (p. 33); vejamos o que nestes versos ele diz: “meu sangue / escorre na pia / junto da carne / que preparo /// que estrago! / não sei lidar com facas / nem com marcas / se estas têm / um significado /// entre cortes / o recorte / de um cotidiano melancólico /// às vezes, sinto / que não caibo /// às vezes, sangro / se me calo.”
Segundo ainda Lasch (1989, p. 44), um novo controle social, na contemporaneidade histórica, determina esse declínio contínuo da autonomia: “preso / dentro de minha / cabeça […] me torno / escravo / da lei / que eu mesmo / criei.” Certamente aquela cinemática “lei do desejo”, tão bem traduzida pelos filmes de Almodóvar… Ora: como mesmo nos mostra o poeta arapiraquence, em seus versos citados acima, corroborando essa teoria de Lasch, neste processo deixamos realmente de ser capazes de realizar tarefas elementares: “a louça / adormece / na pia / eu permaneço / acordado / vendo a rua / vazia /// talvez raie / o dia / e eu aqui / perdido / entre prazos / antecipando / fracassos / culpado / pelo tempo / que corre / escorre / por meus dedos” (p. 47). Fato decorrente, na certa, das chamadas “desordens […] narcísicas”, de acordo ainda com autor de O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis, que assevera ser “essencial sentir prazer na transformação da matéria e no exercício da imaginação criadora.” (LESCH, respectivamente, p. 42 e 44 respectivamente).
E é exatamente isso que Nilson Nobre nos mostra que faz nos versos de “COR” (sic, p. 111), vale notar de passagem. Vejamos mais uma vez, então, tais versos; mas desta, em sua completude poemática:
entre os dedos
o pincel
na tela
sob lágrimas
depois da água
a cor
eu tinta
te pinto
em mim
como o sol
pinta o céu
de lilás
e as nuvens
de laranja
depois
da chuva
minhas cores
preenchem
o branco
disfarçam
o cinza
sinalizam vida
mesmo diante
do fim
não há tragédia
em sermos feitos
para acabar
você sempre
existirá
enquanto eu
existir.
No entanto, o aqui supracitado autor de O mínimo eu é categórico ao afirmar: “Vive-se numa sociedade em que o princípio da autoridade, num certo sentido, desapareceu, e na qual somos controlados não por um código moral rígido ou um sistema de disciplina sexual, mas ao contrário pela ilusão de uma abundância de necessidades e de satisfações.” (LASCH, 1989, p. 46) E arremata sua crítica da cultura narcísica, dizendo mais: “Uma esquerda que fala em nome do id está à margem da realidade. A contracultura é uma reafirmação, mais radical, é bem verdade, da ética dominante, que propõe encontrar a satisfação não no campo do trabalho, mas no da vida pessoal.” (LESCH, p. 46)
Mesmo assinalando que é mais difícil avaliar o aspecto positivo de todo esse processo psicossocial, ou sócio-histórico, Lasch (1989, p. 46) reconhece que “O conceito de politização da vida pessoal resume o que há de mais valioso nesse movimento — a saber, o reconhecimento de que nada, em nossa sociedade, está imunizado contra a influência centralizadora de nossas instituições — mas também os limites de uma visão particular num contexto degradado.” Aliás não só: Lasch (1989, p. 46) credita como sendo outro aspecto positivo, também, “a insistência da nova esquerda americana no conceito de uma democracia fundada na participação.” Entretanto, para esse teórico da “sobrevivência psíquica do eu mínimo” (1987), a nostalgia tornou-se hoje numa outra senha para desacreditar qualquer crítica cujos critérios se baseiem na experiência coletiva, seja no passado de cada um ou no passado de todos. Ele observa, inclusive, que o desaparecimento da história e da filosofia é outra manifestação desse novo modo de controle. E distinguindo este do antigo, Lasch (1989, pp. 47-48) assinala ainda que o modo caduco de controle social dependia de um consenso público; ou seja: de um discurso comum apoiado na lei, na história, no estudo da política da história e das mais amplas e acessíveis generalização filosóficas.
Já nos inícios dos anos 1980, o contraculturismo e as ideologias típicas dos anos 1960 — a “nova esquerda” americana e o feminismo, por exemplo — eram movimentos vastamente questionados por vozes de direita e esquerda que se misturavam em inúmeros debates acadêmicos. Essas vozes, segundo Pierre Dommergues (1989, p. 40), acabaram por constituírem um movimento que produziu “o ressurgimento, sob novas roupagens, de uma direita eterna, ou uma nova prova da incapacidade da esquerda em inovar…” De acordo ainda com Dommergues (1989, p. 41), tanto nos EUA como na França, podia-se constatar “a degradação da coisa pública e a importância assumida pela vida privada”. Nesse contexto, talvez sem perceber a fina ironia de Lasch contida no título de seu livro Abrigo em um terra desalmada, Dommergues (1989, p. 41) pressupõe, a partir de uma leitura deste, que a família nuclear de origem aparece ao mesmo tempo como o lugar privilegiado desse processo; ou seja, como o último refúgio em uma sociedade hostil. Pressuposto do qual, no entanto, Lasch discorda.
Em meados de 1981, num desses debates acadêmicos midiatizados, Umberto Eco e Christian Descamps (1989, pp. 109 e 110), por exemplo, partilharam a mesma percepção de que a “moda” do prazer, do amor e da paixão corresponderia neste quadro a um retorno, em massa, à esfera do privado. Retorno este que Eco, particularmente, considerou “importante” no tocante à sociedade italiana pós-terrorismo. Na ocasião, ele considerou O choque amoroso, de Francesco Alberoni; e Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, como sendo dois livros-referencias nesse processo psicossocial ou sócio-histórico. E fez isso chamando a atenção para o fato histórico curioso de que, no referido processo, até mesmo o Partido Comunista Italiano organizou colóquios consagrados à noção de felicidade. O que sinalizaria, para o semiólogo de Bolonha, uma subversão de valores; ou seja: o mergulho com paixão nos labirintos das relações humanas por uma juventude que, antes, interessava-se pelos coquitéis Molotov.
Ora: o poeta arapiraquense, no seu duplo processo pessoal de migração e emancipação maioritária, parece confirmar essa hipótese de Dommergues nos platônicos versos de “UMBILICAL” (pp. 97-98). Versos estes que foram escritos, especialmente, à sua mãe. Vejamos o que ele diz à ela: “desfaço / outra vez / o laço / que outrora / nos uniu /// nossos corpos / eram um / o meu / dentro / do seu /// eu vivo / alimentado / de você / respirando / com você / até nascer /// desfiz o laço / quando fui / apresentado / ao mundo / turvo /// quando te confrontei / e reivindiquei / pela primeira vez / ser alguém /// quando saí / de casa / supostamente / independente / sem saber / ao certo / o que encontraria /// pensei que a vida / me prepararia / mas agora / em nossa última / despedida / sinto uma dor / umbilical /// sinto falta / do teu abraço / do afago / que havia / na certeza / da tua companhia /// quando eu decidia / voltar para / o lugar / que sempre fora / e talvez / sempre será / o meu lar.”
Este poema — no qual obviamente o poeta registra o seu desenlace, real e simbólico, com a própria genitora, ao deixar a casa dos pais indo embora de sua cidade natal, no interior de Alagoas — obtém contiguidade de sentido com outro, não por acaso, intitulado “ÚTERO” (p. 91); vejamos:
Fechado
no escuro
no silêncio
absoluto
do meu quarto
eu me sinto
guardado
como alguém
que volta
ao útero
materno
e adormece
sem saber
de nascer
amanhã.
Ora: neste outro poema, Nilson já em Maceió, e naturalmente afetado pela saudade e o sentimento de exílio, reconfigura poético-metonimicamente seu próprio quarto de dormir num típico processo, digamos, de reterritorialização histérica. Mas isso, na certa, para colocar em discussão questões como as seguintes: Por que, no Brasil, a democracia é para poucos? Como o país se tornou campeão mundial em ansiedade? O que explica as “epidemias” mundiais de solidão e depressão?
À GUISA DE CONCLUSÃO
Como estamos a ver, o que é chamado por Lasch (1989, p. 43) de “complexo de Narciso”, ou “cultura narcísica”, reflete-se nitidamente na experiência de vida-e-obra de Nilson Nobre enquanto sujeito sócio-histórico e/ou produto-produtor literário. E isso sem importar se suas narrativas autobiográficas, produzidas “nas esquinas desse [seu] apartamento” maceyorkino, têm ou não valor; ou seja: se elas têm, ou não, literariedade.
Embora seu projeto poético incorpore as psicopatologias da vida cotidiana — que, aliás, são típicas de nossa contemporânea “cultura do narcisismo”, como nos mostra Lasch — o fato é que, ainda assim, Nilson Nobre não é, de forma alguma, um daqueles “autores sintomáticos” já descritos por Affonso Romano de Sant’Anna (1984, itálicos do autor, p. 15); ou seja: um autor menor a produzir uma literatura que cristaliza, com mais facilidade, a linguagem alheia. Até mesmo porque os “autores sintomáticos”, de acordo com Sant’ Anna (1984, p. 15), são autores que, mesmo estudados, viveram e escreveram, em sua maioria, na completa ignorância do que era a psicanálise; e, por isso, demostravam em seus escritos uma espontaneidade comovedora. O que não é, nem de longe, o caso de Nilson Nobre: um psicólogo e mestrando em psicologia.
Ora: a narrativa autobiográfica de Nilson Nobre, em alguns de seus momentos mais plenos de literariedade, contêm aqui e ali indicadores linguísticos típicos daquela “narrativa torta”. Uma narrativa que, segundo Dunker (2021, p. 12), confirma e produz o sofrimento na sua modalidade contemporânea “quase obrigatória”: a depressão; ou seja: problemas de sono, baixa libido, menos apetite sexual, dificuldades para começar algo novo, perda de coisas no dia a dia, afeto rebaixado, tristeza, culpa, autocrítica permanente etc — gerando um sofrimento que, de fato, por si só não gera nada; porém, na concepção deste teórico, “é matéria potencial para a experiência comum.”
Vale notar aqui que Lasch (1989, p. 49), por sua vez, nessa discussão, parece sugerir que a disciplina como submissão voluntária, isto é, enquanto requerente de rigor do sujeito em relação a si mesmo e aos outros, não é apenas parte indispensável da erudição, mas da vida; pois de acordo com ele ainda: na passagem do plano da disciplina intelectual para o plano da disciplina da vida cotidiana, cujo objetivo é a formação e o desenvolvimento do caráter, este tipo de disciplina é uma espécie de panaceia contra todos os males da depressão na contemporaneidade.
Mas se o recolhimento introspectivo, que é uma modalidade disciplinar, prejudica a economia de afetos restaurativos (um pressuposto de Dunker [2021, p. 12] que decerto não se aplica ao caso dos poetas maiores, espécies de ministros mais da “solitude” [p. 29] que da solidão), essas formas de sofrimento literatizadas por Nilson Nobre nos levam contudo a atestar, nas esquinas desse seu apartamento maceyorkino, uma poética que é reflexo — senão mesmo produto-produtora — da chamada “cultura do condomínio”. Ou do “sintoma do condomínio” (Dunker, 2021). Uma poética que é, portanto, e sobretudo por isso mesmo, merecedora da nossa mais concentrada atenção e reconhecimento social elogioso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SILVA, Claudicélio Rodrigues da. Poéticas do desejo e dos prazeres LGBTQ na poesia gay brasileiro. Sciele Brasil, 2020. SEÇÃO TEMÁTICA: Literatura LGBT+, estu. Lit. Bras. Contemp. (61). https://doi.org/10.1590/2316- 4018614
1 Maceió-AL, fins de abril de 2022. Neste ensaio, os termos neologísticos “Maceyork” e “maceyorkinos” dizem respeito à uma Maceió transubstanciada, subjetiva, simbólica; senão de fato sutil, quântica ou subatômica. No entanto, tais termos dizem respeito, sobretudo, à uma Maceió glocal (i.e.: não mais provinciana, porém ainda não 100% globalizada) que, pressupõe-se, fôra instituída imaginariamente por alguns criativos e criativas na Maceió-artística contemporânea como neoliberal, ultraliberal ou pós-modernista. Uma Maceió, enfim, “bubo” (i.e.: BUrguesa & BOêmia), para usar aqui uma palavra neologística de David Brook.
2 Graduado em psicologia, pelo CESMAC; Mestre em psicologia social, pela PUC-SP; crítico de arte visual e poesia alagoanas; autor do livro Maceyorkinos: ensaios de crítica cultural à Maceió-artística glocalizada (Ed. Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2013. 180 p.); é autor, também, de um estudo sobre A arte na infância e adolescência de criativos alagoanos: entrevistas impressas com a Alagoas-artística (Rev. Semente da Iniciação Científica/CESMAC, 2009).
7 Na introdução de seu estudo sobre Lira e angústia: poesia alagoana hoje, Raquel Villardi Miranda (1987, p. 13 e 14, respectivamente) — destacando nomes como o de Marcos de Farias Costa, Ana Maria Vieira Soares Filha e de Lúcia Guiomar — diz o seguinte sobre a produção dos poetas de Alagoas: “Torna-se muito difícil, mas profundamente necessário, falar de poesia alagoana hoje. Difícil porque não há nenhum material que possa ser consultado, nenhuma coletânea que, de uma forma ou de outra, dê voz ao trabalho poético que se faz, hoje, na terra de Jorge de Lima; e necessário porque este trabalho é realmente bom. […] É uma ebulição de material de qualidade que merece vir a público. É uma ebulição de idéias [sic], preocupações, desejos. É uma ebulição de comprometimento com a terra, com o homem, com a vida.”
8 Slogan turístico de Maceió lançado nos inícios da década de 1980.